"O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranqüilas. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do SENHOR por longos dias."(Salmos 23: 1-6)

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

FELIZ 2011

FELIZ 2011
Frei Betto *

Para ti e para mim, um feliz ano-novo. Não mera troca numérica de calendário, de quem mantém seu corpo inerte, preso às raízes da insensatez. Nem a sucessão de dias que se repetem no giro cíclico dos gregos antigos, desprovidos de senso histórico. Nem a multiplicação das rugas que se acumulam em nossos corações, oxidadas pela covardia e a saudade de não ser o que se é.

Anseio por um ano-novo capaz de reacender em nós energias generosas, consciência crítica, solidariedade discreta, afetos adormecidos, e a irrefreável vitalidade de quem reinventa o amor a cada dia. Um novo tempo de alegorias, no qual a poesia nos embriague a alma.

Um novo ano despido de soberbas, de evocações ególatras, de rancores asfixiantes e da indizível inveja causada pela felicidade alheia. Ano livre de rumores nefastos, incontinência da língua, indiferença à dor e exacerbação de tudo aquilo que, em nós, esculpe o perfil ácido da desumanidade.

Para ti e para mim desejo um ano-novo em que cada manhã ressoe como o cantar de laudes sob o esplendor de uma revoada de pássaros. E que sejamos despertados pelo afago prenhe de alvíssaras. Sejam os nossos gestos expressões litúrgicas de bem-querer e gratidões.

Não desejo um novo ano de velhos vícios arraigados, como não considerar suficiente o necessário, acumular supérfluos nas gavetas da casa e do coração ou a leniência perante as injustiças. Nenhum ano pode ser novo se arrastamos vida afora nossas almas incendiadas pela ira, o humor de mãos dadas com o rancor, o orgulho como escudo frente aos que apontam nossos erros.

Quero, para ti e para mim, um ano-novo em que a partilha do pão instaure a paz e no qual toda paixão aflore em duradouro amor. Um ano no qual o tempo se desenlace como um tecido fino e transparente, a enlevar-nos na rota do transcendente. Ano de silente contemplação do milagre da Criação e cuidadosa proteção da mãe natureza.

Faço votos de que em 2011 a cegueira apague nossas fúteis ilusões e que brotos de saudáveis quimeras palmilhem a estrada que conduz ao mais íntimo de nós mesmos. Seja para nós um ano de muita fortuna, inflado de projetos promissores, destituído de mesquinharias e perjúrios.

Ano bom é o que traz efervescência espiritual, o vinho a inebriar-nos do sagrado, a alma tecida de alegrias inefáveis, os passos movidos pela vontade alada, o vigor juvenil de quem não encara a velhice como doença. Ano de reavivar antigas amizades, libertar-se dos apegos vorazes, trocar a tagarelice pelo aconchego reflexivo dos livros e deixar a música inundar nossos mais recônditos sentimentos.

Ano-novo é o que transfigura nossas mais secretas intenções e projeta luz nas veredas escavadas por cada uma de nossas positivas atitudes. Assim, haverão de cair as escamas de nossos olhos, os ouvidos acolherão a melodia sideral, o perfume do otimismo nos inebriará, e de nossos lábios brotarão cânticos de aleluia.

Para ti e para mim seja o ano de 2011 ninho de férteis esperanças e senda primaveril rumo a outros mundos possíveis. À mesa, a gratuidade inconsútil; à porta, nossas resistência desarmadas; à sala, um rumor de anjos. E seja toda a casa reduto de sabores e saberes agradáveis ao paladar e à inteligência.

Seja novo, para ti e para mim, o ano entrante, não por reiniciar a sucessão de meses, semanas e dias, e sim por revitalizar nossos bons propósitos, livrar-nos da letargia frente aos desafios espelhados na utopia e arrancar de nosso âmago toda erva daninha semeada por ambições desmedidas.

Novo por incutir em nós a modéstia translúcida de avós afetuosas, o fervor espiritual dos místicos, a exuberância dos bailarinos a multiplicarem as potencialidades do corpo. Ano de romper barreiras do preconceito, derrubar cercas da ganância, fertilizar com sementes altruístas o chão no qual pisamos.

Para ti e para mim, um feliz ano-novo no qual a vida seja diariamente celebrada como dom de Deus, dádiva amorosa, encantadora aventura.

Ao longo deste ano esteja sempre presente, em nossas mentes e em nosso agir, que viver é muito perigozo.


* Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais. Autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O enigma da Cruz



O enigma da Cruz
Pe. Alfredo J. Gonçalves *

A cruz é maldita. Instrumento de tortura e morte do mundo antigo: atroz e duradouro, reservado aos rebeldes mais execrados. "Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro", diz São Paulo na Carta aos Gálatas (Gl 3,13), citando o Livro do Deuteronômio. Deus está ausente da cruz, pois, ainda conforme a citação do Deuteronômio, "aquele que é pendurado é um objeto de maldição divina" (Dt 21,23). O Pai não pode comungar com a violência extremada dos homens, especialmente quando esta se abate sobre um inocente que "passou pela vida fazendo o bem" (At 10,38). Daí o grito atormentado e incompreensível do Filho, agonizante no alto da cruz, citando o salmo 22: "Elói, Elói, lamma sabactáni?", "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Mc 15,34).
 

Mas é igualmente incompreensível que, em momento tão crucial (e este adjetivo tem origem na cruz), o pai abandone o filho. É este, aliás, que torna presente o amor do Pai no seu gesto humano-divino, o gesto mais inaudito e surpreendente de todos os tempos: "Pai perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem!" (Lc 23,34). Aqui o contraste se eleva à máxima potência. À ação violenta das autoridades que o julgaram e dos soldados que o executam, Jesus responde com o perdão. A manifestação mais extremada da violência se confronta com a própria personificação da misericórdia. Enquanto, de um lado, os verdugos se atiram como que embriagados sobre a presa inocente, de outro, Deus "se vinga" oferecendo a dádiva do perdão. Sendo Jesus Cristo a revelação do amor divino, o verbo feito carne, este é sem dúvida o momento sublime de tal revelação.
 

Nesta linha de reflexão, exclui-se completamente a idéia de que o Pai entrega o Filho em sacrifício pela salvação da humanidade. Hoje é unânime entre os estudiosos o consenso de que a morte brutal de Jesus é fruto de seu profetismo e testemunho, ambos de uma radicalidade sem precedentes. Nessa trajetória em defesa da justiça e dos pobres, o nazareno se bate com as forças conservadoras da época, representando tanto o poder judaico quanto o império romano. São as autoridades constituídas que manipulam o povo, exigindo deste um "crucifica-o, crucifica-o" que, irremediável e fatalmente o levará ao calvário. E o Pai, permanece silencioso, indiferente, alheio à cena do Gólgota? O silêncio de Deus é a condição da liberdade humana. Deus é fiel porque cala, respeitando as opções de cada um. Em tudo, menos no pecado, Jesus experimenta a condição humana (Hb 4,15).

Semelhante reflexão remete à obra de René Girard, particularmente A Violência e o Sagrado e O Bode Expiatório. Nesses estudos, o autor sustenta que a resposta de Jesus ao seu julgamento e execução tão bárbara quebra o círculo vicioso da violência, tão comum nas religiões antigas. Nestas, a violência cotidiana exigia um ritual esporádico, igualmente violento, para refazer a coesão e a paz social. Assim se equilibrava e se neutralizava o ciclo espiral dos atos violentos. Era como se o sangue das vítimas - humanas ou animais - aplacasse a fúria das multidões, refletida na ira dos deuses. A reciprocidade violenta ajudava a conter o círculo repetitivo do caos indiferenciado, gerado por algum tipo de agressão. Dessa forma, a vida em sociedade era como que re-fundada periodicamente em rituais de sacrifício. A civilização estava alicerçada na violência recíproca.

Em outra obra, As coisas escondidas desde a criação do mundo, o mesmo autor esclarece como o perdão, oferecido no alto da cruz e no auge do sofrimento, instaura a fundação de outro tipo de relações humanas e sociais. Aqui os laços nascem não do medo e do equilíbrio entre as forças em permanentes choques violentos, e sim no amor e na solidariedade, inclusive para com os inimigos. Jesus inaugura a possibilidade de outro princípio para própria civilização, desta vez alicerçada em redes solidárias recíprocas. As duas grandes guerras mundiais, o holocausto e a guerra-fria, períodos cáusticos e tragicamente pontilhado por milhares de cadáveres insepultos, pode ser outro resultado da violência mútua.

Retomando o tema, o Pai encontra-se, ao mesmo tempo, ausente e presente na cruz onde o Filho dolorosamente agoniza. Ausente na fúria humana que desencadeia a tormenta assassina sobre o profeta dos últimos tempos. Fúria que se reproduz ao longo dos tempos sobre milhões e milhões de vítimas da história, crucificadas pela pobreza, a miséria, a fome e a violência em suas mil formas. Mas Deus está presente no ato de perdão do Filho que, desse modo, revela com todas as luzes o coração misericordioso, compassivo e amoroso de Deus. Coração do bom pastor, do bom samaritano ou do pai que espera ansioso pela volta do "filho pródigo". Nesse contraste inédito entre a violência e o amor, há como que um curto-circuito, uma faísca, um raio - que ilumina o mistério da cruz. O gesto gratuito de perdão como resposta aos algozes que o torturam constitui uma semente. Uma semente que não pode morrer!

Por isso Jesus não é enterrado, mas semeado. Um grupo de leigos, majoritária e sintomaticamente formado por mulheres, se encarrega de descer do madeiro o corpo do Crucificado. São as personagens do momento da crise, da tragédia, da escuridão. Os demais, até mesmo os futuros apóstolos e colunas da futura Igreja, haviam se dispersado. Mas aquele punhado de pessoas toma sobre si a tarefa de prestar as últimas homenagens ao falecido. Não é difícil imaginar com que dor e com que tristeza tais pessoas o fazem. Tampouco é difícil imaginar com que carinho e com que delicadeza elas o transportam ao túmulo. Aí o corpo, de acordo com o costume da época, é cuidadosamente perfumado, envolto em lençóis limpos e "semeado".

A ternura e o esmero que revestem semelhante tarefa parecem acompanhadas de uma profunda intuição: aquele corpo é uma semente e a semente, quando o lavrador lança-a à terra, o faz na esperança de que possa brotar. Inconscientemente, para aqueles poucos fiéis, o retorno à vida parece ser um fruto inevitável frente a uma entrega tão grandiosa. Como se a ressurreição precedesse a própria morte: resultado inequívoco de uma vida que não pode ser apagada nas marcas deixadas na pedra viva da história. Os ventos furiosos da morte não podem desfazer as pegadas de um amor tão belo, tão inteiro e tão profundo. No ato mesmo de "semear" o corpo de Jesus no túmulo está impregnada a intuição de que sua obra e seu gesto final constituem uma semente. Semente que, no solo úmido e aparentemente estéril, irá amadurecer e se levantar. Lançará raízes no terreno da história humana, para depois erguer-se triunfante rumo ao ar livre, ao céu azul, à luz do sol, à Casa do Pai. A ressurreição está em germe, no coração contrito e entristecido daquele pequeno grupo. Talvez para ele o túmulo vazio não tenha representado nenhuma surpresa!

Em outras palavras, na árdua travessia do deserto, quando tudo se faz escuro e parece não haver saída, quem toma nas mãos as rédeas da "história da salvação" é um grupo de leigos, especialmente mulheres. De fato, o espaço compreendido entre a cruz e a ressurreição é tempo de trevas, de desespero. As expectativas com relação ao Reino de Deus se frustram. Tudo parece acabado, o medo tomou o lugar da esperança. Diante dos acontecimentos trágicos, os antigos discípulos sentem-se órfãos, sós e perdidos com a morte do Mestre: enquanto um o havia traído e outro negado, os demais se põem em fuga. Com a exceção do discípulo amado, a debandada contamina a todos.

Emblemático a esse respeito é o episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35). Tristes, impotentes, medrosos e cabisbaixos, retornam para o seu povoado, dando por encerrada a aventura de Jesus de Nazaré. Se o líder terminou suspenso no alto da cruz, o que não poderá ocorrer com eles! O mais seguro é deixar os arredores de Jerusalém e refugiar-se tranquilamente em casa. O mesmo episódio, porém, marca uma reviravolta. Se a ida de Jerusalém a Emaús é o caminho do medo e do fracasso, a volta de Emaús a Jerusalém representa o despertar da chama encoberta pelas cinzas: "não ardia nosso coração quando Ele nos explicava as Escrituras?" Os antigos companheiros de Jesus, que empreendiam uma dolorosa fuga, o reconhecem ao partir o pão. Imediatamente se lhes abre os olhos e o coração para a nova realidade. A brasa ressurge, se reaviva, e ambos regressam com asas nos pés para anunciar a Boa Nova. Todo o episódio representa um parto em que o discípulo desalentado se torna missionário ardoroso, para usar a expressão do Documento de Aparecida. A semente lançada à terra começa a germinar.


* Pe. Alfredo J. Gonçalves é assessor das Pastorais Sociais.

Paulo, o Apóstolo

Paulo, o Apóstolo
Frei Betto *

Paulo de Tarso, que dá nome à mais rica e populosa cidade do Brasil, foi sem dúvida um homem singular. Um dos primeiros discípulos de Jesus, é sobre ele que possuímos mais informações, graças às cartas que escreveu, das quais conhecemos 13, e ao relato do evangelista Lucas, com quem fez viagens missionárias, intitulado Atos dos Apóstolos - documentos que integram o Novo Testamento e são considerados pela Igreja fontes de revelação de Deus.

Paulo ou Saulo, nascido provavelmente no ano 1 de nossa era e falecido em 64, aos 63 anos, em Roma, falava de si mesmo sem o menor pudor e se gabava de sua cultura (2 Coríntios 11, 6) e do título de "cidadão romano" (Atos 16, 37), herdado do pai. O que comprova que certa dose de narcisismo ou vaidade não é prejudicial à santidade… Ou melhor, demonstra que os santos são tão humanos como qualquer um de nós, imperfeitos e pecadores. A diferença é que, em tudo, buscam realizar a vontade de Deus.


Observe o leitor como Paulo se apresenta: "Sou judeu de Tarso da Cilícia, cidadão de uma cidade de renome (Atos 21, 39), circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamin, hebreu, filho de hebreus segundo a Lei (de Moisés), fariseu… Pela justiça da Lei, considerado irrepreensível." (Filipenses 3, 5-6).


Como quase todos os judeus inseridos na cultura grega, ele acresceu ao próprio nome judeu, Saulo, outro grego, foneticamente semelhante: Paulo.

Seus pais haviam emigrado da Palestina para Tarso. Judeus piedosos, resistiram à ideia de matricular o filho em escolas gregas. Tão logo completou 14 anos, Paulo foi remetido a Jerusalém, onde morava sua irmã casada e estudou na mais renomada escola rabínica da época: "aos pés de Gamaliel" (Atos 22, 3). Seus textos demonstram que tinha sólida formação teológica. E era excelente escritor. Seu "Hino ao Amor" (1 Coríntios 13, 1-13) é um dos mais belos poemas da literatura universal:

Ainda que eu falasse
A língua dos homens e dos anjos,
E não tivesse amor,
Seria como o bronze que soa
Ou o címbalo que tine…

A conversão

Paulo encontrava-se entre os apedrejadores do jovem levita Estevão, condenado por "blasfêmia" por haver se tornado cristão. As vestes dos executores foram depositadas "aos pés de um jovem, chamado Saulo" (Atos 7, 58). O próprio Paulo se penitencia mais tarde: "Senhor, enquanto era derramado o sangue de tua testemunha, Estevão, eu estava presente (…) e guardava as vestes daqueles que o matavam" (Atos 22, 20).

Saulo tornou-se aguerrido inimigo dos cristãos: "Persegui de morte esta doutrina, acorrentando e encarcerando homens e mulheres" (Atos 22, 4). Sua ira recaía especialmente sobre os cristãos "ecumênicos", que se abrigavam em Damasco. Os judeu-cristãos de Jerusalém, mais apegados à lei mosaica, não foram molestados por ele.

Ele mesmo narrou o que lhe ocorreu aos 28 anos: "Fui com o objetivo de ali prendê-los (os cristãos) e trazê-los acorrentados a Jerusalém, onde seriam castigados. Ora, estando eu a caminho e aproximando-me de Damasco, pelo meio-dia, de repente me cercou uma intensa luz do céu. Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: "Saulo, Saulo, por que me persegues?" Respondi: "Quem és, senhor?" E ele me disse: "Sou Jesus Nazareno, a quem persegues." (Atos 22, 5-10).

Paulo diz que caiu. Não se sabe se do cavalo, da carroça ou simplesmente tombou ao caminhar… O fato é que o martírio de Estevão havia lhe causado um forte impacto.

Talvez o neocristão tivesse preferido, ao abraçar o seguimento de Jesus, inserir-se na comunidade de Jerusalém. Contudo, foi em Damasco, ao pregar nas sinagogas, que despertou sua vocação apostólica. Pouco depois se retirou para o deserto, talvez para se preparar, espiritual e teologicamente, em alguma comunidade judeu-cristã "ecumênica". Ali permaneceu treze anos! Nada se sabe sobre esse período da vida dele.

A missão

Aos 41 anos de idade, Paulo dirigiu-se a Jerusalém para "visitar" o chefe da nascente Igreja, Pedro (Gálatas 1, 18). Dali, retornou a sua cidade natal, Tarso, de onde teve de fugir, repudiado pelos judeus. Dirigiu-se à Antioquia, onde florescia uma comunidade cristã. De Jerusalém enviaram-lhe um assistente: Barnabé.

Paulo e Barnabé iniciaram suas viagens missionárias no ano 45, por Chipre, onde o segundo havia nascido. Percorreram os 150 km de extensão da ilha, de Salamina a Pafos, semeando a fé cristã. Entre os judeus, não tiveram êxito, o que foi compensado por importante conquista entre os pagãos: a conversão, em Pafos, do procônsul Sérgio Paulo.

Paulo dedicou mais de 14 anos a viagens missionárias. Percorreu cerca de 15 mil km e enfrentou todo tipo de dificuldades: foi açoitado, apedrejado, preso, assaltado; naufragou, sentiu-se traído, passou fome, frio e noites sem dormir (2 Coríntios 11, 24-27), exposto "ao perigo a todo o momento" (1 Coríntios 15, 30). Destemido, nunca guardou ressentimento.

Uma característica de Paulo era a sua capacidade de aculturação. Aos judeus, prega em sinagogas. Em Listra, na falta de sinagoga, dirigiu-se às portas de Júpiter, onde os pagãos julgaram ver Mercúrio, o deus da eloquência, em forma humana… (Atos 14, 11).

Nem sempre é fácil fazer coincidir a mudança de nosso modo de pensar com a do nosso modo de agir. Foi o que ocorreu a judeu-cristãos de Jerusalém e a Pedro. Eles acreditavam que um pagão convertido ao cristianismo deveria, primeiro, aceitar certos rituais judaicos, como a circuncisão e as práticas de pureza. Ora, Paulo discordava de tal recomendação. Para ele, um pagão podia abraçar a fé em Cristo sem a menor observância à lei mosaica. Frente ao impasse, no ano 51 ele participou, em Jerusalém, do primeiro Concílio da história da Igreja.

Pela Carta aos Gálatas, sabemos qual foi a atitude de Paulo no Concílio. Acusou os adeptos da circuncisão de "falsos irmãos" e de "intrusos que se infiltraram para espionar a liberdade que temos em Jesus Cristo, a fim de nos escravizar" (Gálatas 2, 4). Lucas nos faz saber que "a discussão foi longa" (Atos 15, 7). Ao final, chegaram a um acordo, com certas concessões aos mais tradicionalistas.

Porém, logo depois, em Antioquia, ocorre um incidente entre ele e Pedro. Eis o que Paulo escreveu na Carta aos Gálatas (2, 11-14): "Quando Pedro foi a Antioquia, eu o enfrentei em público, porque ele estava claramente errado. De fato, antes de chegarem algumas pessoas da parte de Tiago (bispo de Jerusalém), ele comia com os pagãos; mas, depois que chegaram, Pedro começou a evitar os pagãos e já não se misturava com eles, pois tinha medo dos circuncidados. Os outros judeus também começaram a fingir e até Barnabé se deixou levar pela hipocrisia. Quando vi que eles não estavam agindo direito, conforme a verdade do Evangelho, eu disse a Pedro, na frente de todos: "Você é judeu, mas está vivendo como os pagãos e não como os judeus. Como pode, então, obrigar os pagãos a viverem como judeus?""

Paulo não era contra os judeu-cristãos observarem a lei mosaica. Encarava isso com tolerância. A questão se complicou quando percebeu que Pedro mudou seu modo de agir e passou a admitir que a salvação não viria apenas como dom gratuito de Cristo, mas também pelo cumprimento da lei de Moisés. Ao retomar seus antigos costumes judaicos, Pedro fez os pagão-cristãos se sentirem inferiores aos judeu-cristãos, como se fossem fiéis de segunda classe.

O exemplo

Paulo fazia questão de não ser um peso às comunidades que o acolhiam. Sustentava-se com o seu ofício de fabricante de tendas e de objetos de couro (Atos 18, 3). Nesse sentido, abdicava de sua origem elitista e se igualava a servos e escravos, os únicos que, naquela cultura helenista, faziam trabalhos manuais. Assim, disseminava a palavra de Cristo na base social do Império Romano.

Paulo era um pedagogo. Não se enclausurava num templo à espera de que os fiéis viessem ao seu encontro. Ao chegar a Atenas, onde a comunidade judaica era pequena, dirigiu-se à ágora, onde o povo se reunia para debater temas diversos. Foi encarado como "charlatão" (Atos 17, 18) que anunciava um novo par de divindades: Jesus e Anástase. Isso porque ele pregava a Ressurreição, em grego "anástasis".

Sugeriram-lhe ir ao Areópago, a colina de Marte, onde se reuniam os interessados em filosofia. Paulo exercitou ali toda a sua pedagogia evangelizadora: valorizou seus ouvintes como "extremamente religiosos" (Atos 17, 22) e, ao deparar-se com um altar dedicado "ao Deus desconhecido", soube tirar proveito: "Aquele que venerais sem conhecer é este que vos anuncio" (Atos 17, 23). E parafraseando Arato, poeta conhecido pelos gregos, concluiu que Deus "não está longe de cada um de nós; é nele que vivemos, nos movemos e existimos" (Atos 17, 27-28).

Para tempos de fundamentalismos religiosos, Paulo nos deixou importante legado por seu testemunho de quem passou de perseguidor a perseguido; de membro da elite a pregador itinerante abrigado em comunidades populares; de fariseu intolerante a cristão dotado de espírito ecumênico; de legalista a misericordioso.

Paulo soube ser grego com os gregos e judeu com os judeus; respeitou a hierarquia da Igreja sem deixar de criticar inclusive o papa, Pedro; demonstrou que o contrário do medo não é a coragem, é a fé.

Com muita justeza, Paulo admitiu na Segunda carta a Timóteo (4, 7-8): "Combati o bom combate, terminei a minha corrida, conservei a fé. Agora só me resta a coroa da justiça que o Senhor, justo juiz, me entregará naquele Dia."

Místico, Paulo ousou exclamar: "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim" (Gálatas 2, 20).


* Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais. Autor do romance "Um homem chamado Jesus" (Rocco), entre outros livros.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Sakineh Ashtiani: Adultério, apedrejamento e objetividade

Sakineh Ashtiani: Adultério, apedrejamento e objetividade
Maria Clara Lucchetti Bingemer *

No isolamento de uma prisão no Irã, uma mulher de 43 anos vive o compasso de espera pela execução por apedrejamento. Seu crime? Adultério. Acrescido ultimamente da acusação de conspiração para o homicídio do marido, assassinado pelo amante.

Tal como no antigo Israel e em várias outras civilizações semitas, o adultério era um dos crimes punidos com o apedrejamento. Assim também a blasfêmia, da qual Jesus de Nazaré foi acusado. Acabou sendo crucificado porque sua condenação foi proferida pelo poder romano.

O Islã nasceu vários séculos após o Judaísmo e o Cristianismo e seu livro sagrado, o Alcorão, é venerado pelos muçulmanos como a própria Palavra de Deus feita livro, já que teria sido diretamente revelado por Deus ao profeta Maomé. Portanto, a religião islâmica considera o Alcorão intocável e não modificável, na forma e no fundo, no espírito e na letra.

No entanto, o apedrejamento não é sequer mencionado no Alcorão. Este estipula a pena de cem chibatadas ou prisão perpétua para adúlteros. No entanto, tal como no Cristianismo existe a Bíblia - onde se crê estar a Palavra de Deus revelada ao povo de Israel e à primeira comunidade apostólica - e também o Direito Canônico, que seria a Lei da Igreja para os católicos; e a Confissão de Westminster, que seria algo análogo para protestantes históricos, no Islã existe a Xaria.

Xaria é o nome que o Islã dá ao seu código de leis. No Irã, assim como outras sociedades islâmicas, diferentemente das sociedades ocidentais contemporâneas, o regime é teocrático. Ou seja, religião e direito, religião e política não se separam e a vida dos cidadãos é regida pela lei religiosa. Todas as leis são religiosas e baseadas nas escrituras sagradas e nos ditos dos líderes religiosos.

Ou seja, o Alcorão é a fonte primordial da jurisprudência islâmica, sendo a segunda a Suna, narrativa da vida e dos caminhos do profeta e os ahadith, ou narrações do profeta. "A diferença entre o Alcorão e a Suna, é que o texto do Alcorão e o seu significado vêem de Deus; ao Anjo Gabriel só coube levar essa mensagem ao profeta e a ele só coube receber, preservar, transmitir essa mensagem para as pessoas e explicar o que necessitava de explicação. Enquanto que a Suna, as tradições os significados são de Deus e o texto do profeta, diz Deus o Altíssimo.

Entre todo esse meandro de sutis diferenciações interpretativas, próprias a todas as religiões, está sendo decidido o destino de Sakineh Mohammadi Ashtiani, a bela iraniana de olhos negros e tristes. Apesar de não haver menção ao apedrejamento no Alcorão, defensores deste tipo de condenação afirmam que ela está em um Hadith e, portanto, é narrativa do profeta e como tal, sagrada e parte do corpo da Xaria.

O apedrejamento está previsto na Xaria, para punir tanto mulheres como homens adúlteros e homossexuais. Apesar disso, não há consenso na comunidade islâmica sobre a validade da prática do apedrejamento. Alguns países muçulmanos, como o Irã, o Sudão e a Nigéria adotaram a visão radical do Islã e da ética derivada da revelação divina em seu sistema judicial. No entanto, outros países, como o Afeganistão e o Paquistão, já aboliram esta pena.

Se assim reza a letra da lei, a prática, no entanto muitas vezes vai em outra direção. Em 2002, o então chefe do Judiciário iraniano, o aiatolá Mahmoud Hashemi-Shahroudi, ordenou a suspensão das execuções por apedrejamento. Contudo, juízes locais ainda podem ordenar apedrejamentos. A justiça pelas próprias mãos em nome da fidelidade à Xaria ainda acontece com frequência para punir adultérios.

No caso do Irã, a pena de morte por apedrejamento voltou a ser imposta após a Revolução de 1979, quando o país passou a ter um regime teocrático islâmico. Desde então, 109 pessoas morreram apedrejadas, segundo o Comitê Internacional Contra Apedrejamento. Mesmo que o judiciário iraniano regularmente suspenda as execuções por apedrejamento, frequentemente os condenados são executados de outras maneiras, como na forca. E secretamente, para não chamar a atenção da opinião pública.

Assim, o apedrejamento de Sakineh parece inevitável. A mídia e as ONGs de direitos humanos procuram chamar a atenção da opinião pública mundial numa tentativa de frear a inflexibilidade do governo do presidente Amahdinejad. O próprio presidente Lula ofereceu asilo à iraniana, que o aceitou. A reação de Teerã não foi muito positiva e Lula não repetiu a oferta nem nela insistiu.

O caso é, sem dúvida, complexo. Por um lado, está o respeito devido a toda religião de aplicar aquilo que considera como seu credo e conduta. É impensável hoje anatematizar como barbárie ou magia, ou atraso - como antes era feito - práticas religiosas de outros apenas porque diferem das nossas.

No entanto, há, parece-me, outro lado do problema. Tentando um mínimo de objetividade, há certos fatos que repugnam a sensibilidade humana simplesmente por ser humana. E isso é fruto de uma evolução da consciência da humanidade. Existem condutas que já foram consideradas religiosamente legítimas e hoje não mais o são.

Houve um tempo em que se acreditava que os escravos deveriam continuar escravos e nada fazer para romper sua escravidão em busca da liberdade. Aquilo seria vontade de Deus. Hoje indigna-nos apenas a menção dessa possibilidade. A escravidão é algo objetivamente inumano e iníquo.

Os pobres nasciam pobres porque assim era a vontade de Deus. Os ricos desfrutavam impunemente de sua riqueza e não se julgavam minimamente responsáveis pela injustiça reinante no mundo. Hoje, é no mínimo ridículo usar este argumento, já que se sabe que há mecanismos sociais e econômicos que produzem a injustiça estrutural onde estamos mergulhados e que se deve combatê-la e não justificá-la, muito menos em nome da fé ou da religião.

Houve também um tempo em que organizar guerras e matar pessoas para recuperar lugares sagrados da própria religião eram considerados atos legítimos e até abençoados por líderes religiosos e santos. É o caso das Cruzadas. Tempo houve igualmente em que prender, torturar e matar na fogueira pessoas suspeitas de aderirem a outros credos era prática usual. É o caso da Inquisição. Muito tem sido criticada a Igreja Católica por haver adotado essas práticas. Por quê? Porque é algo objetivamente contra os mais elementares direitos humanos.

Parece-me que, com todo o respeito que se deve ter ao Islã, executar sob a cruel forma do apedrejamento uma mulher cuja culpa foi relacionar-se sexualmente com outro homem que não seu marido, repugna objetivamente a humanidade de quem se pretende humano. Disso se trata e nada mais.

Sakineh Mohammadi Ashtiani merece viver porque é um ser humano. Simplesmente isso. Ninguém tem direito sobre sua vida a não ser Deus, seu Criador. Nem sempre religião e fé coincidem harmoniosamente. Parece-me que este é um caso. A lei religiosa condena Sakineh. Esperemos que a fé islâmica, em sua pureza e raiz, consiga flexibilizar o governo iraniano em sua decisão sobre o destino final desta mulher.


* Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Autora de "Deus amor: graça que habita em nós" (Editora Paulinas), entre outros livros.


O Chão e o Horizonte

O Chão e o Horizonte
Manfredo Araújo de Oliveira *

Este é o título de um documento que alguns organismos vinculados à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil(CNBB) acabam de publicar como subsídio de reflexão a respeito das próximas eleições. Qual a razão deste título? Ele pretende exprimir a atitude que devemos ter frente às situações que marcam nossa vida. O chão diz respeito a tudo aquilo que constitui o mundo em que estamos inseridos que começa precisamente com o chão da vida quotidiana e nos dá o senso do real. O horizonte aponta para onde levam os caminhos. Vivemos um momento muito importante: o momento das eleições que são apesar de todos os seus limites uma grande oportunidade para avaliar, re-afirmar ou corrigir os rumos que marcam a vida de nosso país. A construção de uma sociedade mais humana, portanto, justa, democrática e ecologicamente equilibrada implica o entrelaçamento destas duas perspectivas. Concretamente levar em consideração o chão e o horizonte significa tomar uma posição crítica frente à realidade e buscar com seriedade meios que contribuam para a construção de um mundo alternativo.

A consideração do horizonte destaca a crise, que na realidade é uma combinação de crises, gestada pelo capitalismo neoliberal que por princípio eliminou qualquer regulação do mercado e reduziu drasticamente os investimentos em políticas sociais. Este processo provocou uma aceleração da exclusão social e produziu um modelo de desenvolvimento predatório que esgota os recursos naturais em função de uma produção e um consumo sem limites o que em si mesmo constitui uma ameaça grave a própria sobrevivência da espécie humana e de toda vida no planeta.

A consideração do chão destaca o fato que hoje uma classe, chamada de classe "c", tem tido um grande crescimento em nossa sociedade e já abrange uma boa parte das famílias brasileiras. Esta classe conseguiu mudar seu padrão de vida graças a algumas políticas sociais o que tem levado a uma revitalização do mercado interno. Para estes o sonho do consumo antes impossível pode parcialmente ser realizado. Enquanto estas populações aprovam fortemente o governo atual, suas políticas são também fortemente criticadas como gastança desnecessária pelas classes de melhor poder aquisitivo.

Neste contexto, tudo indica que o processo das eleições presidenciais nos estaria induzindo a ter que escolher entre o Estado indutor do crescimento econômico e redistribuidor de renda e o Estado dito enxuto que privilegia a iniciativa privada admitindo apenas os gastos sociais que não provoquem déficit nas contas públicas. Se nos detemos na consideração do chão do cotidiano tudo se reduz ao dilema entre Estado mínimo e política desenvolvimentista. Um passo importante é dado quando se compreende que ambas as propostas são variantes do mesmo modelo produtivista-consumista, o que significa que na realidade não nos confrontamos com propostas que pretendam ir além daquilo que provocou a crise que hoje vivemos. Diante deste quadro, afirma o documento, é urgente voltar os olhos para o horizonte e nos perguntarmos que fazer.

O sociólogo belga François Houtart nos ajuda a delinear o horizonte da sociedade desejável. Para ele ela pode ser construída sobre quatro grandes eixos. Primeiro, uma relação de respeito e não de exploração com a natureza o que implica declarar a água e as sementes patrimônio universal e não permitir sua privatização. O segundo eixo é privilegiar o valor de uso sobre o valor de troca, o que significa que os produtos e os serviços teriam que ser desenvolvidos em função das necessidades humanas. O terceiro eixo é a democratização da sociedade não somente no campo político, mas em todas as relações sociais coletivas, na economia, nas instituições de saúde, de educação, no esporte e na religião, entre homens e mulheres. O quarto eixo é a multiculturalidade: a possibilidade de que todos os saberes, filosofias e religiões contribuam para a construção social coletiva.


* Manfredo Araújo de Oliveira é doutor em Filosofia e professor da UFC. Presidente da Adital

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O cúmulo da iniquidade humana

O cúmulo da iniquidade humana
Fr. Marcos Sassatelli *

O sequestro e a execução do menino Lucas, de doze anos, é o cúmulo da iniquidade humana. Não dá para entender como possa existir, em pleno século XXI, tanta crueldade. Como pessoas humanas e, sobretudo, como cristãos não podemos ficar calados diante de tanta barbárie. Exigimos justiça.

Lucas morava na Vila Brasília, em Aparecida de Goiânia. Era um menino franzino e nasceu com um defeito nos pés. Começou a andar depois de uma cirurgia, realizada no Hospital das Clínicas da UFG. Usava crack desde os oito anos e, para alimentar o vício, praticava pequenos furtos, passando várias vezes pela polícia.

No dia 16 de julho deste ano, "Lucas foi retirado da porta de casa, na Rua Juçara, por volta das três horas, por homens que ocupavam um carro preto de vidro fumê. O garoto ainda gritou a mãe, mas ela não conseguiu abrir o portão a tempo. Meia hora depois a Polícia Militar de Senador Canedo foi acionada por um chacareiro que viu o corpo de Lucas estendido na estrada (próximo ao Goiás Carne) depois de ouvir o barulho de um carro e quatro disparos" (O Popular, Cidades, 17 de julho de 2010, p. 8).

Meu Deus, em que sociedade nós vivemos! Além do mais, se tratava de uma criança! Que brutalidade!

Eliete, a mãe de Lucas, é uma mulher sofrida e aparenta muito mais idade da que tem. Depois de separar do marido, cuidou sozinha dos seis filhos. Na madrugada do dia 16, "Eliete acordou com os gritos de Lucas, o filho que nasceu com problema nos pés. Por causa do problema congênito e do uso do crack, Lucas era o filho que mais preocupava Eliete. A mãe tentou de todo jeito abrir o portão. Eliete chora o tempo todo como se cobrasse de si mesma por não ter salvado a vida do filho. (…) Eliete se sente fracassada por não ter conseguido tirar Lucas do vício. Há mais de quatro anos buscou ajuda em órgãos públicos, em vão" (Ib.).

É muito doído ouvir a Eliete dizer que "há mais de quatro anos buscou ajuda em órgãos públicos, em vão". Será que essa decepção da Eliete, manifestada em forma de desabafo, não diz nada à consciência dos responsáveis desses órgãos públicos?

Quando será que o Poder Público cumprirá a Constituição Federal? Ela nos lembra que os direitos das crianças e dos adolescentes devem ser assegurados "com absoluta prioridade" e que as crianças e os adolescentes devem ser colocados a salvo "de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (Art. 227).

A Eliete, não precisa se sentir fracassada por não ter conseguido tirar Lucas do vício. Ela é uma verdadeira heroína. Infelizmente, é a nossa sociedade que ainda é muito hipócrita, injusta e desumana. Tenho certeza na fé que Lucas, totalmente liberto, está agora junto de Deus na plenitude da vida e da felicidade. Está também -embora de maneira diferente- junto de sua mãe Eliete, dando-lhe paz e força para que possa continuar a caminhada.

Exigimos da nova Secretária de Segurança Pública do Estado de Goiás, Renata Cheim, que o crime bárbaro da execução de Lucas, uma criança de doze anos, seja investigado e que os culpados sejam processados, julgados e punidos. É o mínimo que pode ser feito para que haja justiça.

Tudo indica que se trata, mais uma vez, de um crime de violência policial, com requinte de crueldade, por ser a vítima uma criança. O advogado da Eliete -conforme noticiou a imprensa- "disse que foi a P2" (Ib.).

Lembrem-se os assassinos de Lucas que Deus é justo. Aguardem!

Goiânia, 02 de agosto de 2010


* Fr. Marcos Sassatelli é Frade Dominicano. Doutor em Filosofia e em Teologia Moral. Prof. na Pós-Graduação em DD.HH. (Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil/PUC-GO). Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arq. de Goiânia. Admin. Paroq. da Paróquia N. Sra. da Terra

Por que persiste a Igreja-poder?

Por que persiste a Igreja-poder?
Leonardo Boff *

Vou abordar um tema incômodo, mas incontornável: como pode a instituição-Igreja, como a descrevi num artigo anterior, com características autoritárias, absolutistas e excludentes se perpetuar na história? A ideologia dominante responde: "só porque é divina". Na verdade, este exercício de poder não tem nada de divino. Era o que Jesus exatamente não queria. Ele queria a hierodulia (sagrado serviço) e não a hierarquia (sagrado poder). Mas esta se impôs através dos tempos.

Instituições autoritárias possuem uma mesma lógica de autoreprodução. Não é diferente com a Igreja-instituição. Em primeiro lugar, ela se julga a única verdadeira e tira o título de "igreja" a todas as demais. Em seguida cria-se um rigoroso enquadramento: um pensamento único, uma única dogmática, um único catecismo, um único direito canônico, uma única forma de liturgia. Não se tolera a crítica nem a criatividade, vistas como negação ou denunciadas como criadoras de uma Igreja paralela ou de um outro magistério.

Em segundo lugar, se usa a violência simbólica do controle, da repressão e da punição, não raro à custa dos direitos humanos. Facilmente o questionador é marginalizado, nega-se-lhe o direito de pregar, de escrever e de atuar na comunidade. O então Card. Joseph Ratzinger, Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, em seu mandato, puniu mais de cem teólogos. Nesta mesma lógica, pecados e crimes dos sacerdotes pedófilos ou outros delitos, como os financeiros, são mantidos ocultos para não prejudicar o bom nome da Igreja, sem o menor sentido de justiça para com as vítimas inocentes.

Em terceiro lugar, mitificam-se e quase idolatram-se as autoridades eclesiásticas principalmente o Papa que é o "doce Cristo na Terra". Penso eu lá com meus botões: que doce Cristo representava o Papa Sérgio (904), assassino de seus dois predecessores ou o Papa João XII (955), eleito com a idade de 20 anos, adúltero e morto pelo marido traído ou, pior, o Papa Bento IX (1033), eleito com 15 anos de idade, um dos mais criminosos e indignos da história do papado, chegando a vender a dignidade papal por 1000 liras de prata?

Em quarto lugar, canonizam-se figuras cujas virtudes se enquadram no sistema, como a obediência cega, a contínua exaltação das autoridades e o "sentir com a Igreja (hierarquia)", bem no estilo fascista segundo o qual "o chefe (o ducce, o Führer) sempre tem razão".

Em quinto lugar, há pessoas e cristãos com natureza autoritária, que acima de tudo apreciam a ordem, a lei e o princípio de autoridade em detrimento da lógica complexa da vida que tem surpresas e exige tolerância e adaptações. Estes secundam esse tipo de Igreja bem como regimes políticos autoritários e ditatoriais. Aliás, há uma estreita afinidade entre os regimes ditatoriais e a Igreja-poder como se viu com os ditadores Franco, Salazar, Mussolini, Pinochet e outros. Padres conservadores são facilmente feitos bispos e bispos fidelíssimos a Roma são promovidos, fomentando a subserviência. Esse bloco histórico-social-religioso se cristalizou e garantiu a continuidade a este tipo de Igreja.

Em sexto lugar, a Igreja-poder sabe do valor dos ritos e símbolos pois reforçam identidades conservadoras, pouco zelando por seus conteúdos, contanto que sejam mantidos inalteráveis e estritamente observados.

Em razão desta rigidez dogmática e canônica, a Igreja-instituição não é vivida como lar espiritual. Muitos emigram. Dizem sim ao cristianismo e não à Igreja-poder com a qual não se identificam. Dão-se conta das distorções feitas à herança de Jesus que pregou a liberdade e exaltou o amor incondicional.

Não obstante estas patologias, possuímos figuras como o Papa João XXIII, Dom Helder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Luiz Flávio Cappio e outros que não reproduzem o estilo autoritário, nem apresentam-se como autoridades eclesiásticas mas como pastores no meio do Povo de Deus. Apesar destas contradições, há um mérito que importa reconhecer: esse tipo autoritário de Igreja nunca deixou de nos legar os evangelhos, mesmo negando-os na prática, e assim permitindo-nos o acesso à mensagem revolucionária do Nazareno. Ela prega a libertação mas geralmente são outros que libertam.


* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor



Liberdade, a virtude dos filhos de Deus

Liberdade, a virtude dos filhos de Deus
Carmen Sílvia Machado Galvão *

Mesmo que não se queira dogmatizar a compreensão do tema liberdade, é imperioso que se busque a formação de juízos aproximados, como a possibilidade de uma pessoa fazer suas próprias escolhas e colocá-las em execução. Ser livre é um direito natural que todo o ser humano tem. Então, surge a questão: o que é ser livre?

No início da década de 80, libertação era uma palavra tabu, torciam o nariz... os "libertários" eram malvistos, muitos foram perseguidos, mandados calar, pressionados até o desespero. Só restaram os leigos, que não deviam obediência a nenhuma autoridade religiosa. Muitos tinham medo da censura e só escreveram coisas superficiais, catequese, liturgia, devocionários populares, etc. Nada que comprometesse. Com isto perdeu o pensamento teológico da Igreja do Brasil, que pouco evoluiu, em comparação com o de outros países da América Latina, da Europa e até da Ásia. Quem combateu a teologia da libertação talvez não tenha se dado conta do mal que fez à Igreja, uma vez que "nosso Deus é um Deus libertador". Esta assertiva não provém da produção dos teólogos latino-americanos, mas é encontrada nas Sagradas Escrituras:

Javé disse: "Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel, o território dos cananeus, heteus, amorreus, ferezeus, heveus e jebuseus. O clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e eu estou vendo a opressão com que os egípcios os atormentam. Por isso, vá. Eu envio você ao Faraó, para tirar do Egito o meu povo, os filhos de Israel" (Ex 3, 7-10).


O Senhor é minha rocha, minha fortaleza, meu libertador (2Sm 22,2);


Javé é meu libertador (Sl 18,3);

As ações libertadoras de Javé são a prefiguração da práxis de Jesus Cristo, libertador definitivo dos homens. Assim como Javé o foi do povo hebreu a partir daquela primeira páscoa, Jesus é para nós e será sempre para as gerações futuras o Go’el (libertador). Ao seu povo, servil a tantos cativeiros, ele lança a promessa de libertação, que nada mais é que uma antecipação do evangelho libertador (cf. Is 52,2/ 61,1).

Assim como acontece com a verdade, ninguém é dono da liberdade, apenas Deus que a concede como um dom. Desta forma não se admite que alguém diga como é e como não é a libertação. Ela é dom e se manifesta conforme o Espírito suscita, no interior da Igreja-comunidade e diretamente no coração de cada um.

É isto que a liberdade proporciona. Em Jo 8 Jesus, ao dizer que a verdade nos libertará, faz a união, estabelece o diálogo entre a libertação (que é luz) e a verdade, que é ele próprio. Por isto, anima o povo ao afirmar que a libertação (com ele) está chegando aos que crêem:

[...] levantem-se e ergam a cabeça, porque a libertação de vocês está próxima (Lc 21,28).

A entrega na cruz subentende liberdade. Ela é história do Filho, história do Pai e do Espírito. Sob o aspecto teológico da fé, liberdade é adesão, vida cristã renovada e espiritualidade. Na liberdade que se comunica com a luz brota a vida nova, abundante. A gente pede a Deus água e ele dá um regato, um manancial, uma cascata...pede-se uma flor e ele dá um jardim, uma plantação de rosas...A quem pede uma árvore ela concede uma floresta, cheia de sombras, paz e perfume silvestre... Liberdade é graça e opção. Os textos do Novo Testamento nos revelam que a liberdade cristã deságua em três questões:

1. Do pecado (Jo 8, 31-36; Rm 6,18-23)

• é operada por Jesus Cristo e consiste na vocação em renunciar à injustiça e toda a espécie de mal. Organiza a vida cristão pelo poder do Espírito Santo e transforma-se - pelo amor - em doce servidão a Deus.

2. Da lei que escraviza (At 15,10; Rm 8,2; Gl 2,4; 5,1.13)

• Às vezes a excessiva preocupação com a lei se transforma em um jugo. O que salva é a graça e não a lei; o que liberta o homem da vontade de pecar é a conversão e não o temor das sanções da lei. Certas leis, por injustas, anacrônicas e autoritárias ensejam o desejo de pecar.

3. Da morte (cf. Rm 6,23; 7, 9ss; 1Cor 15,56)

• Pecado e morte são juízos afins, pois um está ligado ao outro num contexto de nexo causal. Assim como o coração do homem está dividido entre amor e egoísmo, também em sua existência se debatem vida e morte. Alei do Espírito que dá a vida é um novo dinamismo interior que, com a própria vontade de Deus, liberta o homem da lei do pecado e da morte eterna.

A partir de Jesus Cristo, Deus e homem, se instaura no mundo uma práxis capaz de restaurar a criação desfigurada pelo pecado, que tem raízes no mau uso da liberdade. Jesus vem libertar a vida das garras da morte e projetá-la para a liberdade integral, conforme o projeto do Pai. Nesse processo, o cristão, membro do povo de Deus é agente de destinatário da libertação. A libertação que não levar em consideração a liberdade pessoal daqueles que por ela combatem, está, de antemão, condenada ao fracasso. O sentido primário e fundamental da libertação, que se manifesta na história humana, é o sentido soteriológico (refere-se à salvação); o homem é libertado da escravidão radical do mal e do pecado.

Ele nos arrancou do poder das trevas e nos introduziu no Reino de seu Filho muito amado (Cl 1,13).


* Carmen Sílvia Machado Galvão é teóloga leiga, socióloga e escritora

Qual o legado da crise com os pedófilos na Igreja?

Qual o legado da crise com os pedófilos na Igreja?
Leonardo Boff *

No século XVI no auge do poder dos Papas renascentistas em Roma envoltos em escândalos de toda ordem, surgiu um clamor em toda a Igreja de "reforma na cabeça e nos membros". Esse clamor vinha dos leigos, do baixo clero e dos teólogos como Lutero, Zwinglio e outros. Em resposta veio a Contra-Reforma que transformou a Igreja Católica num baluarte contra o movimento dos Reformadores, enrijecendo ainda mais suas estruturas de poder.

Agora o escândalo dos padres pedófilos em vários países católicos fez com que surgisse também um vigoroso clamor por reformas estruturais na Igreja. Ele não vem apenas de baixo como no tempo da Reforma, mas principalmente de cima, de cardeais e bispos. Primeiramente, este pecado, este crime gerou uma desastrosa gestão do Vaticano. Inicialmente tentou-se desqualificar os fatos como "fofocas mediáticas"; depois, procurou-se ocultá-los, usando até o "sigilo pontifício" a pretexto de salvaguardar a presumida santidade intrínseca da Igreja; em seguida, minimizaram-se os fatos, ou criou-se o factóide de um complô de obscuras forças laicistas contra a Igreja e por fim, face à impossibilidade de qualquer via de desculpa e de fuga, a verdade incômoda veio à tona.

O Papa tomou medidas severas contra os pedófilos, consideradas insuficientes por muitos da própria Igreja. Pois, não basta a "tolerância zero" e as punições canônicas e civis. Tudo isso vem a posteriori, depois de cometido o delito. Nada se diz como evitar que tais escândalos se repitam e que reformas introduzir na vivência do celibato e na educação dos candidatos ao sacerdócio. Não se coloca como prioritária a salvaguarda das vítimas inocentes, muitas delas revelando um tenebroso vazio espiritual, fruto da traição que sentiram da Igreja, num misto de culpa e de vergonha.

Em seguida, as altas autoridades fizeram-se mutuamente graves acusações. O Card. Cristoph Schönborn de Viena acusou o Cardeal Angelo Sodano, quando era Secretário de Estado (o primeiro posto depois do Papa) de ter ocultado a pedofilia de seu antecessor na sede, o Card. Hans-Herrman Groër. Bispos alemães criticaram a conferência episcopal de não ter sido suficientemente vigilante face aos notórios abusos sexuais do bispo de Ausgburg Walter Mixa, obrigado a renunciar. O mesmo refere-se ao bispo de Bruges da Bélgica que abusou por 8 anos de um seu sobrinho.

Impactante é a autocrítica feita pelo arcebispo de Camberra Mark Coleridge, reconhecendo que a moral da Igreja concernente ao corpo e à sexualidade é rígida e de estilo jansenista, criando nos seminaristas uma "imaturidade institucionalizada", além da tendência à discreção e ao segredo face aos delitos, para manter o bom nome da Igreja, fruto de um hipócrita triunfalismo. O primaz da Irlanda Diarmuid Martin se perguntou sinceramente pelo futuro da Igreja em seu país, tal o número de pedófilos nas instituições e por muitos e longos anos. Reconhece que reformas são urgentes, pois, a Igreja "não pode ficar aprisionada em seu passado" mas deve introduzir mudanças fundamentais em sua estrutura que impeçam tais desvios. Talvez o documento mais lúcido e corajoso veio do bispo auxiliar de Camberra, Pat Power. Este cobra "uma necessária reforma sistêmica e total das estruturas da Igreja". Afirma que "na condução da Igreja, toda masculina, não reside toda a sabedoria, mas que ela deve ouvir a voz dos fiéis". Com coragem reconhece que "se as mulheres tivessem mais poder de decisão, não chegaríamos à crise atual".

Poderíamos aduzir outras vozes de altas autoridades eclesiásticas. Mas o importante é constatar que este escândalo que afetou o capital de ética e de confiança da Igreja-instituição, paradoxalmente deixou um legado positivo: suscitou a questão das reformas de base, aprovadas pelo Concílio Vaticano II. Estas, porém, foram boicotadas pela Cúria vaticana e pelos dois últimos Papas que se alinharam à uma visão conservadora e contrária à toda modernidade.

Os que amamos a Igreja com suas luzes e sombras queremos entender a atual crise como uma oportunidade suscitada pelo Espírito para que a Igreja-instituição, realmente, encontre a forma melhor de transmitir a boa-nova de Jesus e ajude a humanidade a enfrentar uma crise ainda maior, aquela do sistema-vida e do sistema-Terra, terrivelmente ameaçados.

* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor de Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja, Record (2008).












Igreja: uma leitura teológica

Igreja: uma leitura teológica
Leonardo Boff *

Nos artigos anteriores refletimos sobre uma questão particular, a do poder na Igreja, centralizado no clero e no Papa, de cariz absolutista. Alguns ficaram chocados; mas, a verdade é essa mesma. Agora cabe uma reflexão geral, de cunho teológico, quer dizer: considerar as realidades divinas subjacentes à Igreja, entendida como comunidade que se forma a partir da fé em Jesus como Filho de Deus e Salvador universal.

Notoriamente a intenção primeira de Jesus não foi a Igreja, mas o Reino de Deus, aquela utopia radical de completa libertação. Tanto assim que os evangelistas Lucas, Marcos e João sequer conhecem a palavra Igreja. É somente Mateus que fala três vezes de Igreja. Mas não se realizando o Reino devido a execução judicial de Jesus, foi a Igreja que entrou em seu lugar. O Novo Testamento nos transmite três formas diferentes de organizar a Igreja: a sinagogal de São Mateus, a carismática de São Paulo e a hierárquica dos discípulos de Paulo, Timóteo e Tito. Foi esta que prevaleceu.

Antes de tudo, a Igreja se define como comunidade de fiéis. Enquanto comunidade, ela se sente ancorada no Deus cristão que também é comunidade de Pai, Filho e Espírito Santo. Isto significa que a comunidade é anterior às instâncias de poder cujo lugar é no meio dela, como serviço de animação e de coesão. O amor e a comunhão, essência da Trindade, são também a essência teológica da Igreja.

Esta comunidade se sustenta sobre duas colunas: Jesus Cristo e o Espírito Santo. Jesus aparece sob duas figuras: a do homem de Nazaré, pobre, profeta ambulante que pregou o Reino de Deus (em oposição ao Reino de César) e que acabou na cruz; e sob a figura do ressuscitado que ganhou dimensão cósmica estando presente na matéria, na evolução e na comunidade, como antecipação do homem novo e do fim bom do universo.

A segunda coluna é o Espírito Santo. Ele estava presente no ato da criação do cosmos, sempre acompanha a humanidade e cada pessoa e chega antes do missionário. É ele que suscita a espiritualidade: a vivência do amor, do perdão, da solidariedade, da compaixão e da abertura a Deus. Na Igreja ele mantém vivo o legado de Jesus e é responsável por sua contínua atualização com carismas, pensamentos criativos, ritos e linguagens inovadoras.

Santo Ireneu (+200) disse bem: Cristo e o Espírito são as duas mãos do Pai com as quais nos alcança e nos salva.

Cristo por ser a encarnação do Filho, representa o lado mais permanente da Igreja, seu caráter institucional. O Espírito, o lado mais criativo, seu caráter dinâmico. A Igreja viva é simultaneamente algo estruturado mas também algo mutante como as inovações que fogem ao controle da instituição.

Diz-se também que a Igreja concreta, como comunidade e como movimento de Jesus, possui duas dimensões: a petrina e a paulina. A petrina (de São Pedro=Papa) é o princípio da Tradição e da continuidade. A dimensão paulina (de São Paulo) representa o momento de ruptura, a criatividade. Paulo deixou o solo judaico e partiu para a inculturação no mundo helênico. Pedro é a organização, Paulo a criação.

Pedro e Paulo se encontram unidos na figura do Papa, herdeiro e guardião das duas vertentes, simbolizadas pelos túmulos dos dois apóstolos em Roma. Ambas se pertencem mutuamente. Mas nos últimos séculos predominou a dimensão petrina, quase afogando a paulina. Tal desequilíbrio deu origem a uma organização eclesiástica centralista, com o poder em poucas mãos, conservadora e resistente ao novo, seja vindo do interior da Igreja mesma; seja da sociedade. O atual Papa é quase exclusivamente petrino, avesso a toda modernidade.

Hoje se impõe recuperar o equilíbrio eclesiológico perdido. A Igreja deve manter a herança intacta de Jesus (Pedro) e ao mesmo tempo renovar as formas de sua realização no mundo (Paulo). Só assim supera seu conservadorismo e mostra sua criatividade na comunicação com os contemporâneos. Ela não pode ser fonte de águas mortas, mas de águas vivas.

* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor de Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja, Record (2008).






Um outro jeito de ser Igreja

Um outro jeito de ser Igreja
Leonardo Boff *

Quem leu meu último artigo - Onde está a verdadeira crise da Igreja - poderá ter ficado desesperançado. Ai analisei a estrutura de poder da Igreja, centralizada, piramidal, absolutista e monárquica. Este tipo de poder não favorece o ideal evangélico de igualdade, de fraternidade e a participação dos fiéis. Antes fecha as portas à participação e ao amor. É que esse tipo de poder, por sua natureza, precisa ser forte e frio. O modelo de Igreja-poder se apresenta como a Igreja tout court, pior ainda, como querida por Cristo, quando, como mostrei, surgiu historicamente e é apenas sua instância de animação e direção, perfazendo menos de 0,1% de todos os fiéis. Portanto, não é toda a Igreja, apenas uma parte mínima dela.

Mas a Igreja-comunidade como fenômeno religioso e movimento de Jesus é muito mais que a instituição. Ela encontra outras formas de organização, bem mais próximas ao sonho do Fundador e de seus primeiros seguidores. Inteligentemente, os bispos brasileiros em sua reunião anual em Brasília de 4-13 de janeiro do corrente ano confessaram: "só uma Igreja com diferentes jeitos de viver a mesma fé será capaz de dialogar relevantemente com a sociedade contemporânea". Com isso eles quebraram a pretensão de um único modo de ser, aquele da Tradição do poder. Sem negar este, há muitos outros jeitos: o jeito da Igreja da libertação, dos carismáticos, dos religiosos e religiosas, da Ação Católica, até da Opus Dei, da Comunhão e Libertação e da Canção Nova, só para dizer as mais conhecidas.

Mas há um jeito que é todo especial e altamente promissor, nascido nos anos 50 do século passado no Brasil e que ganhou relevância mundial, pois foi assimilado em muitos países: as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Os bispos lhe dedicaram uma animadora "Mensagem ao Povo de Deus sobre as CEBs". Curiosamente, elas surgiram no momento em que eclodiu no Brasil uma nova consciência histórica. Na sociedade: o sujeito popular ansiando por mais participação política e na Igreja: o sujeito eclesial, ansiando também por mais participação e corresponsabilidade eclesial. As CEBs constituem outro modo de ser Igreja, cujo sujeito principal, mas não exclusivo, são os pobres. Seu estilo é comunitário, participativo e inserido na cultura local. Os serviços são rotativos e a escolha, democrática. Articulam continuamente fé e vida, ativos no campo religioso, criando novos serviços e ritos e ativos no campo social ou político, nos sindicatos, nos movimentos sociais como no MST ou nos partidos populares.

Não sabemos exatamente quantas são, mas calcula-se que cheguem a cem mil comunidades de base, envolvendo alguns milhões de cristãos. Os bispos constatam seu alto valor inovador e anti-sistêmico. O mercado expulsou as relações de cooperação e solidariedade enquanto nas CEBs se vive as relações fundadas na gratuidade, na lógica do oferecer-receber-retribuir. Elas assumiram a causa ecológica, por isso, se entendem também como CEBs = comunidades ecológicas de base. Desenvolveram uma forte espiritualidade do cuidado para com a vida e para com a Mãe Terra. Dai resultou mais respeito, veneração e cooperação com tudo o que existe e vive.

As CEBs mostram como a memória sagrada de Jesus pode receber outra configuração social, centrada na comunhão, no amor fraterno e na alegria de testemunhar a vitória da vida contra as opressões. É o significado existencial da ressurreição de Jesus como insurreição contra o tipo de mundo vigente.

Humildemente os bispos testemunham que elas ajudam a Igreja a estar mais comprometida com a vida e com o sofrimento dos pobres. Mais ainda: interpelam a Igreja inteira chamando-a à conversão, ao compromisso para a transformação do mundo em mundo de irmãos e irmãs.

Esse modo de ser Igreja pode servir de modelo para a inserção na cultura contemporânea, urbana e globalizada. Se fosse assumido como inspiração para o projeto do Papa Bento XVI de "reconquistar" a Europa, seguramente teria algum sucesso. Ver-se-iam comunidades de cristãos, intelectuais, operários, mulheres, jovens, vivendo sua fé em articulação com os desafios de suas situações. Não pretenderiam ter o monopólio da verdade e do caminho certo. Mas se associariam a todos os que buscam seriamente uma nova linguagem religiosa e um novo horizonte de esperança para a Humanidade.

* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor de Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja, Record (2008).

domingo, 15 de agosto de 2010

Pai Nosso dos Mártires



"Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados". (Mt 5,6)

"Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus". (Mt 5, 10)

Os que promovem a paz eque lutam pela justiça, sempre serão perseguidos por aqueles que não desejam dividir o poder, a riqueza, o status quo. Ser perseguido por causa da justiça é igualar-se à condição de Jesus, mártir maior da luta pelo fim da exclusão e da injustiça.

sábado, 31 de julho de 2010

A (im)potência de Deus

A (im)potência de Deus
Ricardo Lengruber Lobosco*

Há experiências que nos impelem a refletir sobre questões essenciais. Uma criança à noite esmolando nas ruas de uma grande cidade (passando frio e fome, com o rosto sujo, com o cabelo desfigurado e os pés no chão) faz, no mínimo, que nos perguntemos sobre o “porquê” de tal absurdo. Para os que têm uma preocupação teológica latente, uma realidade tão crua move para a pergunta sobre Deus e sua justiça. Faz, em última instância, com que nos perguntemos sobre “onde está Deus”.

A religião tradicional – seja de que colorido doutrinário for – insiste na onipotência divina como um atributo sobre o qual não há questionamentos cabíveis. Mas se Deus é onipotente, por que há tanto sofrimento e injustiça sobre a face da Terra? Por que uma criança inocente sofre barbaridades sem sequer ter chance de defesa?

As respostas mais recorridas para tais irracionalidades não me satisfazem plenamente. Não posso concordar que Deus tenha planos “elevados” a tal ponto que eu não consiga entender o sofrimento de uma pequena criança. Não concordo que para tudo haja “um propósito”, ainda que eu seja limitado em absorvê-lo! Não posso acreditar, também, que haja uma linha sucessória entre erros de gerações, que faz com que filhos herdem erros dos pais e, por causa desses, sofram tão radicalmente. Também não admito que Deus, em sua soberana inteligência, ensine aos homens com o sofrimento espelhado na história.

O máximo que consigo admitir é que nós buscamos uma razão para tudo e somos capazes de – mesmo diante do maior sofrimento e de sua mais profunda irracionalidade – atribuir sentido e finalidade para tudo que ocorre conosco e com os que nos cercam. Não porque haja, em princípio, tal finalidade, mas porque atribuímos tal propósito para nos ajudar a explicar a vida que nos “prega” experiências absurdas. Sou, ainda, capaz de aprender com os erros espalhados pela vida; mas não posso concordar que tais sofrimentos tenham sido programados por Deus para nos ensinar algo!

Em outras palavras, diante do absurdo do sofrimento inocente, permanece a questão: onde está Deus?

Se não concordo com as explicações clássicas de maldição hereditária, de propósitos divinos previamente planejados ou de crescimento humano com o sofrimento, permaneço necessitando de uma reflexão lúcida que me ajude – mais do que a compreender – a experimentar o sofrimento que permeia a existência de forma honesta e destemida.

Por isso, acredito que o problema germinal esteja na imagem de Deus que construímos ao longo dos séculos. A capacidade infinita de Deus que tudo pode, tudo sabe e em tudo está me coloca diante de um ser originário que “controla” tudo e todos. Qualquer experiência que exista se liga, diretamente, à “vontade divina”. Nada acontece sem que passe pelo crivo divino! Se há sofrimento, é porque Deus quer ou Deus permite. Creio que esteja aí o problema de tudo.

Permito-me uma linha de raciocínio diferente: creio que Deus tenha criado tudo! Ainda que seja sensível às explicações científicas sobre a origem e evolução da vida no planeta, não me furto em crer que – antes e dentro de todo o processo – está a vontade criativa de Deus!

Mas um traço foi (e é) determinante no processo: o desenvolvimento da liberdade humana. Na linguagem da Bíblia, fomos criados “à imagem e à semelhança de Deus”. A capacidade de escolha e de decisão auferida ao ser humano é como se fizesse com que o Criador impusesse a si mesmo um limite além do qual sua onipotência original se vê impedida de avançar. A outorga da liberdade é incondicional e radical. Não há qualquer condicionamento para ser livre, a não ser estar vivo; não há qualquer limite, a não ser o que nos auto-impusermos!

Está na radicalidade incondicional da liberdade humana a explicação para os sofrimentos e injustiças mais atrozes que vivenciamos conosco ou em nosso derredor. É como se pudesse dizer que Deus, ao imprimir sua imagem no ser humano, concedesse de forma absoluta a liberdade; e, por respeito a si mesmo, não avançasse para além de tal concessão.

A conseqüência natural de tal linha de raciocínio é que Deus, assim experimentado, parece – ao contrário de onipotente – impotente.

Mas o curioso e surpreendente é que a mesma Bíblia que esclarece sobre a liberdade humana, testemunha sobre o sofrimento mais radical e injusto da história. A morte violenta de Jesus na cruz, se vista com a honestidade da inteligência desprovida dos vícios tradicionais da religião conformista, salta aos olhos como a mais radical de todas as experiências de dor, sofrimento e injustiça.

E, segundo me parece, está exatamente aqui a chave para a compreensão da questão. Jesus é a presença real de Deus na história. Aquele que criou e concedeu liberdade – diante das atrocidades escolhidas pelo ser humano ao longo da jornada da existência e perante à limitação imposta a si mesmo ao conceder liberdade radical ao homem – decidiu “esvaziar-se” de sua própria condição e assumiu a vida e o ser do humano. Fez-se um ser humano! Jesus é a encarnação de Deus. O Pai deixou sua soberania e mergulhou na fragilidade da vida humana e o fez de forma absolutamente plena. A vida assumida em Jesus é o retrato da fraqueza humana: desde a estrebaria do nascimento à loucura da morte na cruz.

Na experiência da vida e da morte de Jesus, Deus tornou-se solidário com os homens. Encarnou a solidariedade de sofrer como os homens sofrem e morrer como os homens morrem. Em Jesus, Deus manifesta – mais do que onipotência – misericórdia e compaixão. Assume em si a paixão e o sofrimento da história.

A criança que esmola abandonada na rua tem um irmão em Jesus, que nasceu na pobreza e abandono de um estábulo e morreu solitário na dor de uma cruz romana.

O poder de Deus está exatamente na sua mais radical outorga de liberdade ao ser humano, seguida de uma compaixão plena que o fez – diante da escolha mal encaminhada do ser humano – dar a mão aos sofredores da história e fazer-se como um deles.

A graça é, em última análise, causa e conseqüência da impotência imposta a si mesmo pelo poder infinito de Deus!

Ricardo Lengruber Lobosco é docente de Teologia no Instituto Metodista Bennett no Rio de Janeiro e docente de Filosofia na Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia em Nova Friburgo

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Onde está a verdadeira crise da Igreja

Onde está a verdadeira crise da Igreja
Leonardo Boff *

A crise da pedofilia na Igreja romano-católica não é nada em comparação à verdadeira crise, essa sim, estrutural, crise que concerne à sua institucionalidade histórico-social. Não me refiro à Igreja como comunidade de fiéis. Esta continua viva apesar da crise, se organizando de forma comunitária e não piramidal como a Igreja da Tradição. A questão é: que tipo de instituição representa esta comunidade de fé? Como se organiza? Atualmente, ela comparece como defasada da cultura contemporânea e em forte contradição com o sonho de Jesus, percebida pelas comunidades que se acostumaram a ler os envangelhos em grupos e então a fazer a suas analises.

Dito de forma breve mas não caricata: a instituição-Igreja se sustenta sobre duas formas de poder: um secular, organizativo, jurídico e hierárquico, herdado do Império Romano e outro espiritual, assentado sobre a teologia política de Santo Agostinho acerca da Cidade de Deus que ele identifica com a instituição-Igreja. Em sua montagem concreta não é tanto o Evangelho ou a fé cristã que contam, mas estes poderes, considerados como um único "poder sagrado" (potestas sacra) também na forma de sua plenitude (plenitudo potestatis) no estilo imperial romano da monarquia absolutista. César detinha todo o poder: político, militar, jurídico e religioso. O Papa, semelhantemente detém igual poder: "ordinário, supremo, pleno, imediato e universal" (canon 331), atributos só cabíveis a Deus. O Papa institucionalmente é um César batizado.

Esse poder que estrutura a instituição-Igreja foi se constituindo a partir do ano 325 com Imperador Constantino e oficialmente instaurado em 392 quando Teodósio, o Grande (+395) impôs o cristianismo como a única religião de Estado. A instituição-Igreja assumiu esse poder com todos os títulos, honrarias e hábitos palacianos que perduram até os dias de hoje no estilo de vida dos bispos, cardeais e papas.

Esse poder ganhou, com o tempo, formas cada vez mais totalitárias e até tirânicas, especialmente a partir do Papa Gregório VII que em 1075 se autoproclamou senhor absoluto da Igreja e do mundo. Radicalizando, Inocêncio III (+1216) se apresentou não apenas como sucessor de Pedro mas como representante de Cristo. Seu sucessor, Inocêncio IV(+1254), deu o último passo e se anunciou como representante de Deus e por isso senhor universal da Terra que podia distribuir porções dela a quem quisesse, como depois foi feito aos reis de Espanha e Portugal no século XVI. Só faltava proclamar Papa infalível, o que ocorreu sob Pio IX em 1870. O circulo se fechou.

Ora, este tipo de instituição encontra-se hoje num profundo processo de erosão. Depois de mais de 40 anos de continuado estudo e meditação sobre a Igreja (meu campo de especialização) suspeito que chegou o momento crucial para ela: ou corajosamente muda e assim encontra seu lugar no mundo moderno e metaboliza o processo acelerado de globalização e ai terá muito a dizer, ou se condena a ser uma seita ocidental, cada vez mais irrelevante e esvaziada de fiéis. O projeto atual de Bento XVI de "reconquista" da visibilidade da Igreja contra o mundo secular é fadado ao fracasso se não proceder a uma mudança institucional. As pessoas de hoje não aceitam mais uma Igreja autoritária e triste como se fosse ao próprio enterro. Mas estão abertas à saga de Jesus, ao seu sonho e aos valores evangélicos.

Esse crescendo na vontade de poder, imaginado ilusoriamente vindo diretamente de Cristo, impede qualquer reforma da instituição-Igreja, pois tudo nela seria divino e intocável. Realiza-se plenamente a lógica do poder, descrita por Hobbes em seu Leviatã: "o poder quer sempre mais poder, porque não se pode garantir o poder senão buscando mais e mais poder". Uma instituição-Igreja que busca assim um poder absoluto fecha as portas ao amor e se distancia dos sem-poder, dos pobres. A instituição perde o rosto humano e se faz insensível aos problemas existenciais, como da família e da sexualidade.

O Concílio Vaticano II (1965) procurou curar este desvio pelos conceitos de Povo de Deus, de comunhão e de governo colegial. Mas o intento foi abortado por João Paulo II e Bento XVI que voltaram a insistir no centralismo romano, agravando a crise.

O que um dia foi construído pode ser num outro, desconstruído. A fé cristã possui força intrínseca de nesta fase planetária encontrar uma forma institucional mais adequada ao sonho de seu Fundador e mais consentânea ao nosso tempo.


* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor

terça-feira, 4 de maio de 2010

A justiça de Deus

A justiça de Deus
Antônio Mesquita Galvão *

Nossa justiça humana, muitas vezes, é "justa" demais. Dividimos, de forma maniqueísta, os homens em bons e maus. Sem saber o que fazer, pedimos a Deus que intervenha, colocando ordem nas coisas, castigando depressa os que julgamos definitivamente perdidos. As leituras bíblicas revelam que a justiça de Deus é diferente da nossa. Para ele, ser justo é sinal de indulgência e mansidão.

A justificação do homem, ensina São Paulo, ocorre por uma iniciativa gratuita de Deus. Ela cresce proporcionalmente à nossa aceitação cotidiana da vida da graça. Esta não é só o fruto de nossos pobres esforços, mas da presença do Espírito Santo em nós, porque em nossa miséria, nada podemos e temos que pedir ajuda pela oração. Mas não sabemos rezar: "Não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém".

Se fosse suficiente recitar fórmulas decoradas, seria fácil. Jesus ensinou que não adianta desperdiçar palavras como fazem os pagãos. Importa, ao orar, abrir-se ao sopro renovador do Espírito para intuir o que Deus quer de nós. A partir dessa consciência, podemos abrir os olhos e enxergar o que há a nosso redor. O bem (o trigo) existe, mas a seu lado, notamos um mal (o joio), que cresce cada vez com mais força. Bem e mal, fazem parte da perspectiva humana, e por isso devem conviver até a colheita.

A linha que separa o bem do mal é tão tênue que se torna quase imperceptível, em alguns casos. É um engano dizer que o mal "está no mundo". O mal está em nosso coração. Nós é engendramos, a partir de nosso interior, todas as maldades. Com mais ou menos vigilância, nós o controlamos ou o deixamos agir.

Santo Agostinho, sobre esse dualismo, chega a dizer que "em mim habita um santo e um bandido". Nas atuais circunstâncias, se descesse "fogo do céu" como pedem alguns "menos avisados", se queimaria, por certo, trigo e joio. Até no mais perverso dos homens, há em seu coração, junto com o joio, alguma coisa de trigo. Por que queimá-lo? "Calma", diz o Senhor!

Deus não ama somente os bons. Ama a todos; também os maus. E nós? Por acaso, sentimo-nos no grupo dos "justos", como que "obrigados" a viver em um mundo perverso? Não há em nosso legalismo um pouco (ou bastante) de hipocrisia? Nunca nos ocorreu o desejo fundamentalista de ver, um dia, a força de Deus detonar os projetos dos perversos e mandar pelos ares todos os ímpios, pecadores ou os que não pensam como nós?

*Antônio Mesquita Galvão é doutor em Teologia Moral

Uma nova visão de Deus

Uma nova visão de Deus
Marcelo Barros

As guerras e atos de intolerância praticados por crentes das mais diversas religiões fundamentam-se em uma visão de Deus que ama o bom e odeia o mau, premia o justo e castiga o ímpio. No decorrer dos tempos muitos religiosos sentiram-se investidos da missão de serem 'espada de Deus' para castigar os inimigos. Os fundamentalismos e movimentos fanáticos são expressões deste modo de viver e compreender a fé. Hoje, ao contrário, para trabalhar pela paz, é necessário crer em Deus como amor incondicional e compaixão universal.

Deus é mistério. O que sobre ele afirmamos é mais revelador de nós mesmos que do próprio Deus. Alguém já escreveu que, se os cavalos pensassem e tivessem uma religião, o deus deles seria um belo eqüino. Isso não quer dizer que Deus é apenas projeção das carências e fantasias humanas. Ciências contemporâneas, como a Física Quântica, descobrem, por detrás das partículas mais ínfimas do universo, uma inteligência misteriosa. Muitos percebem o universo como um organismo vivo. As religiões tradicionais falam de uma energia de amor ocultamente presente em toda a natureza e no mistério da vida.

Um dos mais notáveis teólogos evangélicos do nosso século dizia: "O nome da profundidade e do fundo infinito, inesgotável de todo ser, é Deus. Esta profundidade é o próprio sentido da palavra Deus. Se vocês virem o que há de mais importante e profundo na cultura e na vida de alguém ou de um povo, vocês estão tocando no mistério da presença de Deus".

A tradição hebraica ensina que nenhum nome define totalmente a Deus. Na diversidade de nomes, aspectos do seu mistério são contemplados. Conforme o Êxodo, Deus disse a Moisés: "Foi como El Shaddai que Eu me revelei a Abraão, a Isaac e a Jacó" (Ex 6).

Pouco a pouco, o povo de Deus referiu ao Senhor Deus vários nomes e atribuições que as tribos lhe conferiam: o Deus dos pais, o Deus da aliança, o Deus dos exércitos e muitos outros.

No deserto Deus deixou que os hebreus venerassem, como sendo dele, a imagem da Serpente de Bronze, que serviria para curar; não aceitou, entretanto, a imagem do Bezerro de Ouro, que os tirava do caminho da libertação. Os profetas rejeitaram, como idólatras, imagens opressoras e cruéis de Deus: Moloc era uma visão de deus que exigia sacrifícios humanos; Baal era uma imagem de deus que legitimava o imperialismo dos fenícios e o comércio opressor.

A Bíblia vai mostrando uma revelação progressiva de Deus como Amor e Compaixão. Jesus o chama de "Paizinho" (Abba) e revela em Deus traços de amor feminino de mãe.

A revelação bíblica depende da cultura do povo e, por isso, mantém muitas imagens de Deus ligadas à violência e à vingança. Hoje não podemos aceitar que Deus tenha criado toda a humanidade, mas tenha revelado seu amor apenas a uma minoria que forma "a religião verdadeira", deixando a maioria da humanidade "nas trevas do erro". Seria como um pai ou mãe que gera muitos filhos e resolve cuidar de um só, mandando todos os outros para um orfanato. Não podemos crer, ao pé da letra, na palavra da Bíblia segundo a qual Deus mandou Abraão matar Isaac, seu filho único, só para testar se Abraão lhe era obediente. Não podemos admitir que Deus tenha dado ordem aos israelitas para exterminarem cidades inteiras dos cananeus. Não cremos que Deus tenha mandado uma peste sobre toda a população do país, apenas para castigar o rei Davi que pecou. Ou que se apresente dizendo: "Sou um Deus que vinga a maldade dos pais nos filhos e nos netos, até a terceira geração".

No Evangelho Jesus diz que Deus faz nascer o sol sobre os bons e sobre os maus e ama os justos e os injustos. Ensina-nos que Deus é amor, vida e perdão. Não castiga ninguém nem é responsável pelo mal que existe no mundo. Judeus e cristãos podem aceitar que se chame a divindade de Brahma, Alá, Olorum ou Tupã, contanto que Deus não legitime ódios e violência, injustiças e discriminação social.

Pelo fato de saber, cientificamente, que o sol não nasce ali ou morre acolá, não deixamos de usar as imagens poéticas do sol nascente e poente. Reler os textos sagrados com o olhar crítico da História e das ciências interpretativas não diminui nossa veneração por eles e nossa busca da Palavra de Deus contida nestas tradições. É como uma partitura musical: contém as notas da melodia que se torna viva e bela cada vez que é executada.

Para os cristãos, graças a Deus, surgem novas traduções da Bíblia que podem ajudar-nos nesta tarefa da interpretação e da busca do rosto de Deus oculto nos traços dos textos antigos. Nesta verdadeira peregrinação interior o descobrimos sempre como um Deus que nos surpreende e diz: "Faço novas todas as coisas" (Ap. 21,5).

Marcelo Barros é monge beneditino, autor de diversos livros.

A Paixão de Paulo: A Cruz de Cristo

A Paixão de Paulo: A Cruz de Cristo
Maria Clara Lucchetti Bingemer *

Poucos encontros na história da humanidade são narrados com tamanha intensidade e paixão como o de Paulo de Tarso com Jesus Cristo. O texto do Novo Testamento usa expressões de grande força simbólica e evocativa para descrevê-lo: uma luz resplandecente vinda do céu, uma voz que soava forte e perguntava: "Por que me persegues?"

Aquilo que se apresenta como uma teofania esmagadora e terrível provocou em Paulo uma rendição sem limites. A pessoa que se manifesta naquela luz e naquela voz é por ele chamada de Senhor desde o primeiro momento. Entre trêmulo e atônito, Paulo só ousa perguntar humildemente àquele que o conquistou para sempre o que deve fazer. Apaixonado e seduzido no mais profundo de si mesmo encontraria a partir dali o sentido de sua vida na pessoa do Cristo Ressuscitado que atravessou seu caminho na estrada de Damasco.

Quando nos apaixonamos tudo passa a ser diferente. É o amor apaixonado que determina nossa vida. Nosso acordar pela manhã e nosso entardecer. Nossas decisões, o que fazer com nosso tempo, o que priorizar em nossas escolhas. O que é capaz de assombrar-nos, o que tem poder de maravilhar-nos. O que provoca nossa entrega sem retorno e sem voltar atrás. Aquilo pelo qual somos capazes de morrer e que por isso dá um sentido à nossa vida.

Assim foi com o amor apaixonado que Paulo de Tarso sentiu e experimentou desde aquele primeiro minuto na estrada de Damasco até o fim de sua vida. A paixão por Jesus Cristo determinava seus afetos, atos, pensamentos e polarizava todas as suas energias. A única coisa que passou a importar para ele foi seguir esse Senhor que lhe arrebatara o coração, anunciá-lo por toda parte e a toda gente. E identificar-se com ele de modo tão profundo que já não houvesse separação possível entre os dois.

Tudo que antes Paulo considerava valioso e apreciável, diante da magnitude da presença de Jesus Cristo em sua vida tornou-se lixo e perda. A única coisa que o urgia e impulsionava para frente era o amor de Cristo. Viver para Paulo era, então, não mais viver para si, mas para Aquele que por nós morreu e ressuscitou. Tomado por um amor incondicional, Paulo se lança para frente com os olhos fixos em Jesus Cristo e dessa união extrai forças para o seu ministério apostólico cheio de vicissitudes e dificuldades.

Diante delas, porém, Paulo não recua nem treme, pois considera um privilégio e uma alegria trazer em seu corpo as marcas de Cristo e experimentar na carne os sofrimentos de Cristo pelo bem de sua Igreja. A mútua compenetração entre amante e amado se faz cada vez mais íntima e profunda a ponto de fazer Paulo sentir e exclamar estar pregado na cruz com Jesus Cristo. Não é mais ele que vive, mas Cristo que nele vive.

A fé em Jesus Cristo e o amor que dela deriva levam Paulo a morrer para a lei pela qual antes se guiava cegamente, a fim de viver para Deus. E a viver sua vida na fé no Filho de Deus que - confessa ele cheio de gratidão - "me amou e se entregou por mim". Diante da entrega total da paixão de Cristo, Paulo sente-se arrebatado de amor e declara não pretender jamais gloriar-se a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para ele e ele para o mundo.

Em nosso tempo de relações líquidas e fugazes, que se fazem e desfazem com o simples toque de um clic, onde tudo é descartável e efêmero, e se desfaz no momento seguinte em que se faz, a gigantesca figura de Paulo de Tarso nos diz algo importante sobre o que é o amor. Não emoção passageira, sentimento barato, sensação volátil. Mas paixão que arrebata e exige a vida inteira. Algo pelo qual vale a pena morrer e que por isso mesmo ensina a viver com sentido e plenitude.

* Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor" (Ed. Rocco).