"O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranqüilas. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do SENHOR por longos dias."(Salmos 23: 1-6)

terça-feira, 4 de maio de 2010

A justiça de Deus

A justiça de Deus
Antônio Mesquita Galvão *

Nossa justiça humana, muitas vezes, é "justa" demais. Dividimos, de forma maniqueísta, os homens em bons e maus. Sem saber o que fazer, pedimos a Deus que intervenha, colocando ordem nas coisas, castigando depressa os que julgamos definitivamente perdidos. As leituras bíblicas revelam que a justiça de Deus é diferente da nossa. Para ele, ser justo é sinal de indulgência e mansidão.

A justificação do homem, ensina São Paulo, ocorre por uma iniciativa gratuita de Deus. Ela cresce proporcionalmente à nossa aceitação cotidiana da vida da graça. Esta não é só o fruto de nossos pobres esforços, mas da presença do Espírito Santo em nós, porque em nossa miséria, nada podemos e temos que pedir ajuda pela oração. Mas não sabemos rezar: "Não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém".

Se fosse suficiente recitar fórmulas decoradas, seria fácil. Jesus ensinou que não adianta desperdiçar palavras como fazem os pagãos. Importa, ao orar, abrir-se ao sopro renovador do Espírito para intuir o que Deus quer de nós. A partir dessa consciência, podemos abrir os olhos e enxergar o que há a nosso redor. O bem (o trigo) existe, mas a seu lado, notamos um mal (o joio), que cresce cada vez com mais força. Bem e mal, fazem parte da perspectiva humana, e por isso devem conviver até a colheita.

A linha que separa o bem do mal é tão tênue que se torna quase imperceptível, em alguns casos. É um engano dizer que o mal "está no mundo". O mal está em nosso coração. Nós é engendramos, a partir de nosso interior, todas as maldades. Com mais ou menos vigilância, nós o controlamos ou o deixamos agir.

Santo Agostinho, sobre esse dualismo, chega a dizer que "em mim habita um santo e um bandido". Nas atuais circunstâncias, se descesse "fogo do céu" como pedem alguns "menos avisados", se queimaria, por certo, trigo e joio. Até no mais perverso dos homens, há em seu coração, junto com o joio, alguma coisa de trigo. Por que queimá-lo? "Calma", diz o Senhor!

Deus não ama somente os bons. Ama a todos; também os maus. E nós? Por acaso, sentimo-nos no grupo dos "justos", como que "obrigados" a viver em um mundo perverso? Não há em nosso legalismo um pouco (ou bastante) de hipocrisia? Nunca nos ocorreu o desejo fundamentalista de ver, um dia, a força de Deus detonar os projetos dos perversos e mandar pelos ares todos os ímpios, pecadores ou os que não pensam como nós?

*Antônio Mesquita Galvão é doutor em Teologia Moral

Uma nova visão de Deus

Uma nova visão de Deus
Marcelo Barros

As guerras e atos de intolerância praticados por crentes das mais diversas religiões fundamentam-se em uma visão de Deus que ama o bom e odeia o mau, premia o justo e castiga o ímpio. No decorrer dos tempos muitos religiosos sentiram-se investidos da missão de serem 'espada de Deus' para castigar os inimigos. Os fundamentalismos e movimentos fanáticos são expressões deste modo de viver e compreender a fé. Hoje, ao contrário, para trabalhar pela paz, é necessário crer em Deus como amor incondicional e compaixão universal.

Deus é mistério. O que sobre ele afirmamos é mais revelador de nós mesmos que do próprio Deus. Alguém já escreveu que, se os cavalos pensassem e tivessem uma religião, o deus deles seria um belo eqüino. Isso não quer dizer que Deus é apenas projeção das carências e fantasias humanas. Ciências contemporâneas, como a Física Quântica, descobrem, por detrás das partículas mais ínfimas do universo, uma inteligência misteriosa. Muitos percebem o universo como um organismo vivo. As religiões tradicionais falam de uma energia de amor ocultamente presente em toda a natureza e no mistério da vida.

Um dos mais notáveis teólogos evangélicos do nosso século dizia: "O nome da profundidade e do fundo infinito, inesgotável de todo ser, é Deus. Esta profundidade é o próprio sentido da palavra Deus. Se vocês virem o que há de mais importante e profundo na cultura e na vida de alguém ou de um povo, vocês estão tocando no mistério da presença de Deus".

A tradição hebraica ensina que nenhum nome define totalmente a Deus. Na diversidade de nomes, aspectos do seu mistério são contemplados. Conforme o Êxodo, Deus disse a Moisés: "Foi como El Shaddai que Eu me revelei a Abraão, a Isaac e a Jacó" (Ex 6).

Pouco a pouco, o povo de Deus referiu ao Senhor Deus vários nomes e atribuições que as tribos lhe conferiam: o Deus dos pais, o Deus da aliança, o Deus dos exércitos e muitos outros.

No deserto Deus deixou que os hebreus venerassem, como sendo dele, a imagem da Serpente de Bronze, que serviria para curar; não aceitou, entretanto, a imagem do Bezerro de Ouro, que os tirava do caminho da libertação. Os profetas rejeitaram, como idólatras, imagens opressoras e cruéis de Deus: Moloc era uma visão de deus que exigia sacrifícios humanos; Baal era uma imagem de deus que legitimava o imperialismo dos fenícios e o comércio opressor.

A Bíblia vai mostrando uma revelação progressiva de Deus como Amor e Compaixão. Jesus o chama de "Paizinho" (Abba) e revela em Deus traços de amor feminino de mãe.

A revelação bíblica depende da cultura do povo e, por isso, mantém muitas imagens de Deus ligadas à violência e à vingança. Hoje não podemos aceitar que Deus tenha criado toda a humanidade, mas tenha revelado seu amor apenas a uma minoria que forma "a religião verdadeira", deixando a maioria da humanidade "nas trevas do erro". Seria como um pai ou mãe que gera muitos filhos e resolve cuidar de um só, mandando todos os outros para um orfanato. Não podemos crer, ao pé da letra, na palavra da Bíblia segundo a qual Deus mandou Abraão matar Isaac, seu filho único, só para testar se Abraão lhe era obediente. Não podemos admitir que Deus tenha dado ordem aos israelitas para exterminarem cidades inteiras dos cananeus. Não cremos que Deus tenha mandado uma peste sobre toda a população do país, apenas para castigar o rei Davi que pecou. Ou que se apresente dizendo: "Sou um Deus que vinga a maldade dos pais nos filhos e nos netos, até a terceira geração".

No Evangelho Jesus diz que Deus faz nascer o sol sobre os bons e sobre os maus e ama os justos e os injustos. Ensina-nos que Deus é amor, vida e perdão. Não castiga ninguém nem é responsável pelo mal que existe no mundo. Judeus e cristãos podem aceitar que se chame a divindade de Brahma, Alá, Olorum ou Tupã, contanto que Deus não legitime ódios e violência, injustiças e discriminação social.

Pelo fato de saber, cientificamente, que o sol não nasce ali ou morre acolá, não deixamos de usar as imagens poéticas do sol nascente e poente. Reler os textos sagrados com o olhar crítico da História e das ciências interpretativas não diminui nossa veneração por eles e nossa busca da Palavra de Deus contida nestas tradições. É como uma partitura musical: contém as notas da melodia que se torna viva e bela cada vez que é executada.

Para os cristãos, graças a Deus, surgem novas traduções da Bíblia que podem ajudar-nos nesta tarefa da interpretação e da busca do rosto de Deus oculto nos traços dos textos antigos. Nesta verdadeira peregrinação interior o descobrimos sempre como um Deus que nos surpreende e diz: "Faço novas todas as coisas" (Ap. 21,5).

Marcelo Barros é monge beneditino, autor de diversos livros.

A Paixão de Paulo: A Cruz de Cristo

A Paixão de Paulo: A Cruz de Cristo
Maria Clara Lucchetti Bingemer *

Poucos encontros na história da humanidade são narrados com tamanha intensidade e paixão como o de Paulo de Tarso com Jesus Cristo. O texto do Novo Testamento usa expressões de grande força simbólica e evocativa para descrevê-lo: uma luz resplandecente vinda do céu, uma voz que soava forte e perguntava: "Por que me persegues?"

Aquilo que se apresenta como uma teofania esmagadora e terrível provocou em Paulo uma rendição sem limites. A pessoa que se manifesta naquela luz e naquela voz é por ele chamada de Senhor desde o primeiro momento. Entre trêmulo e atônito, Paulo só ousa perguntar humildemente àquele que o conquistou para sempre o que deve fazer. Apaixonado e seduzido no mais profundo de si mesmo encontraria a partir dali o sentido de sua vida na pessoa do Cristo Ressuscitado que atravessou seu caminho na estrada de Damasco.

Quando nos apaixonamos tudo passa a ser diferente. É o amor apaixonado que determina nossa vida. Nosso acordar pela manhã e nosso entardecer. Nossas decisões, o que fazer com nosso tempo, o que priorizar em nossas escolhas. O que é capaz de assombrar-nos, o que tem poder de maravilhar-nos. O que provoca nossa entrega sem retorno e sem voltar atrás. Aquilo pelo qual somos capazes de morrer e que por isso dá um sentido à nossa vida.

Assim foi com o amor apaixonado que Paulo de Tarso sentiu e experimentou desde aquele primeiro minuto na estrada de Damasco até o fim de sua vida. A paixão por Jesus Cristo determinava seus afetos, atos, pensamentos e polarizava todas as suas energias. A única coisa que passou a importar para ele foi seguir esse Senhor que lhe arrebatara o coração, anunciá-lo por toda parte e a toda gente. E identificar-se com ele de modo tão profundo que já não houvesse separação possível entre os dois.

Tudo que antes Paulo considerava valioso e apreciável, diante da magnitude da presença de Jesus Cristo em sua vida tornou-se lixo e perda. A única coisa que o urgia e impulsionava para frente era o amor de Cristo. Viver para Paulo era, então, não mais viver para si, mas para Aquele que por nós morreu e ressuscitou. Tomado por um amor incondicional, Paulo se lança para frente com os olhos fixos em Jesus Cristo e dessa união extrai forças para o seu ministério apostólico cheio de vicissitudes e dificuldades.

Diante delas, porém, Paulo não recua nem treme, pois considera um privilégio e uma alegria trazer em seu corpo as marcas de Cristo e experimentar na carne os sofrimentos de Cristo pelo bem de sua Igreja. A mútua compenetração entre amante e amado se faz cada vez mais íntima e profunda a ponto de fazer Paulo sentir e exclamar estar pregado na cruz com Jesus Cristo. Não é mais ele que vive, mas Cristo que nele vive.

A fé em Jesus Cristo e o amor que dela deriva levam Paulo a morrer para a lei pela qual antes se guiava cegamente, a fim de viver para Deus. E a viver sua vida na fé no Filho de Deus que - confessa ele cheio de gratidão - "me amou e se entregou por mim". Diante da entrega total da paixão de Cristo, Paulo sente-se arrebatado de amor e declara não pretender jamais gloriar-se a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para ele e ele para o mundo.

Em nosso tempo de relações líquidas e fugazes, que se fazem e desfazem com o simples toque de um clic, onde tudo é descartável e efêmero, e se desfaz no momento seguinte em que se faz, a gigantesca figura de Paulo de Tarso nos diz algo importante sobre o que é o amor. Não emoção passageira, sentimento barato, sensação volátil. Mas paixão que arrebata e exige a vida inteira. Algo pelo qual vale a pena morrer e que por isso mesmo ensina a viver com sentido e plenitude.

* Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor" (Ed. Rocco).