"O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranqüilas. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do SENHOR por longos dias."(Salmos 23: 1-6)

sábado, 31 de julho de 2010

A (im)potência de Deus

A (im)potência de Deus
Ricardo Lengruber Lobosco*

Há experiências que nos impelem a refletir sobre questões essenciais. Uma criança à noite esmolando nas ruas de uma grande cidade (passando frio e fome, com o rosto sujo, com o cabelo desfigurado e os pés no chão) faz, no mínimo, que nos perguntemos sobre o “porquê” de tal absurdo. Para os que têm uma preocupação teológica latente, uma realidade tão crua move para a pergunta sobre Deus e sua justiça. Faz, em última instância, com que nos perguntemos sobre “onde está Deus”.

A religião tradicional – seja de que colorido doutrinário for – insiste na onipotência divina como um atributo sobre o qual não há questionamentos cabíveis. Mas se Deus é onipotente, por que há tanto sofrimento e injustiça sobre a face da Terra? Por que uma criança inocente sofre barbaridades sem sequer ter chance de defesa?

As respostas mais recorridas para tais irracionalidades não me satisfazem plenamente. Não posso concordar que Deus tenha planos “elevados” a tal ponto que eu não consiga entender o sofrimento de uma pequena criança. Não concordo que para tudo haja “um propósito”, ainda que eu seja limitado em absorvê-lo! Não posso acreditar, também, que haja uma linha sucessória entre erros de gerações, que faz com que filhos herdem erros dos pais e, por causa desses, sofram tão radicalmente. Também não admito que Deus, em sua soberana inteligência, ensine aos homens com o sofrimento espelhado na história.

O máximo que consigo admitir é que nós buscamos uma razão para tudo e somos capazes de – mesmo diante do maior sofrimento e de sua mais profunda irracionalidade – atribuir sentido e finalidade para tudo que ocorre conosco e com os que nos cercam. Não porque haja, em princípio, tal finalidade, mas porque atribuímos tal propósito para nos ajudar a explicar a vida que nos “prega” experiências absurdas. Sou, ainda, capaz de aprender com os erros espalhados pela vida; mas não posso concordar que tais sofrimentos tenham sido programados por Deus para nos ensinar algo!

Em outras palavras, diante do absurdo do sofrimento inocente, permanece a questão: onde está Deus?

Se não concordo com as explicações clássicas de maldição hereditária, de propósitos divinos previamente planejados ou de crescimento humano com o sofrimento, permaneço necessitando de uma reflexão lúcida que me ajude – mais do que a compreender – a experimentar o sofrimento que permeia a existência de forma honesta e destemida.

Por isso, acredito que o problema germinal esteja na imagem de Deus que construímos ao longo dos séculos. A capacidade infinita de Deus que tudo pode, tudo sabe e em tudo está me coloca diante de um ser originário que “controla” tudo e todos. Qualquer experiência que exista se liga, diretamente, à “vontade divina”. Nada acontece sem que passe pelo crivo divino! Se há sofrimento, é porque Deus quer ou Deus permite. Creio que esteja aí o problema de tudo.

Permito-me uma linha de raciocínio diferente: creio que Deus tenha criado tudo! Ainda que seja sensível às explicações científicas sobre a origem e evolução da vida no planeta, não me furto em crer que – antes e dentro de todo o processo – está a vontade criativa de Deus!

Mas um traço foi (e é) determinante no processo: o desenvolvimento da liberdade humana. Na linguagem da Bíblia, fomos criados “à imagem e à semelhança de Deus”. A capacidade de escolha e de decisão auferida ao ser humano é como se fizesse com que o Criador impusesse a si mesmo um limite além do qual sua onipotência original se vê impedida de avançar. A outorga da liberdade é incondicional e radical. Não há qualquer condicionamento para ser livre, a não ser estar vivo; não há qualquer limite, a não ser o que nos auto-impusermos!

Está na radicalidade incondicional da liberdade humana a explicação para os sofrimentos e injustiças mais atrozes que vivenciamos conosco ou em nosso derredor. É como se pudesse dizer que Deus, ao imprimir sua imagem no ser humano, concedesse de forma absoluta a liberdade; e, por respeito a si mesmo, não avançasse para além de tal concessão.

A conseqüência natural de tal linha de raciocínio é que Deus, assim experimentado, parece – ao contrário de onipotente – impotente.

Mas o curioso e surpreendente é que a mesma Bíblia que esclarece sobre a liberdade humana, testemunha sobre o sofrimento mais radical e injusto da história. A morte violenta de Jesus na cruz, se vista com a honestidade da inteligência desprovida dos vícios tradicionais da religião conformista, salta aos olhos como a mais radical de todas as experiências de dor, sofrimento e injustiça.

E, segundo me parece, está exatamente aqui a chave para a compreensão da questão. Jesus é a presença real de Deus na história. Aquele que criou e concedeu liberdade – diante das atrocidades escolhidas pelo ser humano ao longo da jornada da existência e perante à limitação imposta a si mesmo ao conceder liberdade radical ao homem – decidiu “esvaziar-se” de sua própria condição e assumiu a vida e o ser do humano. Fez-se um ser humano! Jesus é a encarnação de Deus. O Pai deixou sua soberania e mergulhou na fragilidade da vida humana e o fez de forma absolutamente plena. A vida assumida em Jesus é o retrato da fraqueza humana: desde a estrebaria do nascimento à loucura da morte na cruz.

Na experiência da vida e da morte de Jesus, Deus tornou-se solidário com os homens. Encarnou a solidariedade de sofrer como os homens sofrem e morrer como os homens morrem. Em Jesus, Deus manifesta – mais do que onipotência – misericórdia e compaixão. Assume em si a paixão e o sofrimento da história.

A criança que esmola abandonada na rua tem um irmão em Jesus, que nasceu na pobreza e abandono de um estábulo e morreu solitário na dor de uma cruz romana.

O poder de Deus está exatamente na sua mais radical outorga de liberdade ao ser humano, seguida de uma compaixão plena que o fez – diante da escolha mal encaminhada do ser humano – dar a mão aos sofredores da história e fazer-se como um deles.

A graça é, em última análise, causa e conseqüência da impotência imposta a si mesmo pelo poder infinito de Deus!

Ricardo Lengruber Lobosco é docente de Teologia no Instituto Metodista Bennett no Rio de Janeiro e docente de Filosofia na Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia em Nova Friburgo

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Onde está a verdadeira crise da Igreja

Onde está a verdadeira crise da Igreja
Leonardo Boff *

A crise da pedofilia na Igreja romano-católica não é nada em comparação à verdadeira crise, essa sim, estrutural, crise que concerne à sua institucionalidade histórico-social. Não me refiro à Igreja como comunidade de fiéis. Esta continua viva apesar da crise, se organizando de forma comunitária e não piramidal como a Igreja da Tradição. A questão é: que tipo de instituição representa esta comunidade de fé? Como se organiza? Atualmente, ela comparece como defasada da cultura contemporânea e em forte contradição com o sonho de Jesus, percebida pelas comunidades que se acostumaram a ler os envangelhos em grupos e então a fazer a suas analises.

Dito de forma breve mas não caricata: a instituição-Igreja se sustenta sobre duas formas de poder: um secular, organizativo, jurídico e hierárquico, herdado do Império Romano e outro espiritual, assentado sobre a teologia política de Santo Agostinho acerca da Cidade de Deus que ele identifica com a instituição-Igreja. Em sua montagem concreta não é tanto o Evangelho ou a fé cristã que contam, mas estes poderes, considerados como um único "poder sagrado" (potestas sacra) também na forma de sua plenitude (plenitudo potestatis) no estilo imperial romano da monarquia absolutista. César detinha todo o poder: político, militar, jurídico e religioso. O Papa, semelhantemente detém igual poder: "ordinário, supremo, pleno, imediato e universal" (canon 331), atributos só cabíveis a Deus. O Papa institucionalmente é um César batizado.

Esse poder que estrutura a instituição-Igreja foi se constituindo a partir do ano 325 com Imperador Constantino e oficialmente instaurado em 392 quando Teodósio, o Grande (+395) impôs o cristianismo como a única religião de Estado. A instituição-Igreja assumiu esse poder com todos os títulos, honrarias e hábitos palacianos que perduram até os dias de hoje no estilo de vida dos bispos, cardeais e papas.

Esse poder ganhou, com o tempo, formas cada vez mais totalitárias e até tirânicas, especialmente a partir do Papa Gregório VII que em 1075 se autoproclamou senhor absoluto da Igreja e do mundo. Radicalizando, Inocêncio III (+1216) se apresentou não apenas como sucessor de Pedro mas como representante de Cristo. Seu sucessor, Inocêncio IV(+1254), deu o último passo e se anunciou como representante de Deus e por isso senhor universal da Terra que podia distribuir porções dela a quem quisesse, como depois foi feito aos reis de Espanha e Portugal no século XVI. Só faltava proclamar Papa infalível, o que ocorreu sob Pio IX em 1870. O circulo se fechou.

Ora, este tipo de instituição encontra-se hoje num profundo processo de erosão. Depois de mais de 40 anos de continuado estudo e meditação sobre a Igreja (meu campo de especialização) suspeito que chegou o momento crucial para ela: ou corajosamente muda e assim encontra seu lugar no mundo moderno e metaboliza o processo acelerado de globalização e ai terá muito a dizer, ou se condena a ser uma seita ocidental, cada vez mais irrelevante e esvaziada de fiéis. O projeto atual de Bento XVI de "reconquista" da visibilidade da Igreja contra o mundo secular é fadado ao fracasso se não proceder a uma mudança institucional. As pessoas de hoje não aceitam mais uma Igreja autoritária e triste como se fosse ao próprio enterro. Mas estão abertas à saga de Jesus, ao seu sonho e aos valores evangélicos.

Esse crescendo na vontade de poder, imaginado ilusoriamente vindo diretamente de Cristo, impede qualquer reforma da instituição-Igreja, pois tudo nela seria divino e intocável. Realiza-se plenamente a lógica do poder, descrita por Hobbes em seu Leviatã: "o poder quer sempre mais poder, porque não se pode garantir o poder senão buscando mais e mais poder". Uma instituição-Igreja que busca assim um poder absoluto fecha as portas ao amor e se distancia dos sem-poder, dos pobres. A instituição perde o rosto humano e se faz insensível aos problemas existenciais, como da família e da sexualidade.

O Concílio Vaticano II (1965) procurou curar este desvio pelos conceitos de Povo de Deus, de comunhão e de governo colegial. Mas o intento foi abortado por João Paulo II e Bento XVI que voltaram a insistir no centralismo romano, agravando a crise.

O que um dia foi construído pode ser num outro, desconstruído. A fé cristã possui força intrínseca de nesta fase planetária encontrar uma forma institucional mais adequada ao sonho de seu Fundador e mais consentânea ao nosso tempo.


* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor