"O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranqüilas. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do SENHOR por longos dias."(Salmos 23: 1-6)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Vazio e busca da paz

Vazio e busca da paz
Pe. Alfredo J. Gonçalves *

Há um vazio acima de nossas cabeças órfãs e perdidas, abaixo de nossos pés inseguros e escorregadios, ao redor de nosso agir febril e pragmático. Procuramos uma palavra no céu e topamos com o silêncio inquietante e impenetrável, que a um só tempo diz tudo e tudo oculta; procuramos um terreno sólido sobre o qual firmar as raízes e apoiar-se, e escorregamos para um abismo sem fundo, dele ficando suspensos por um fio tênue e frágil; procuramos um rosto que, em meio à multidão solitária, nos transmita vida e nos reconheça, e todos se furtam sorrateiramente.

Mais grave ainda, há um vazio em nossos olhos intoxicados de cores e imagens, em nosso peito curvado sob o peso dos afazeres e preocupações, em nossa alma atormentada por dúvidas e interrogações. Também aqui procuramos um olhar de compreensão e conforto, mas o que mora nos olhos de todos é o medo e a frieza, o desdém e a indiferença; procuramos um coração amigo, onde depositar confiantemente temores, mágoas e feridas, mas tropeçamos com gente de pedra, como o concreto e o asfalto da grande metrópole; procuramos um espírito lúcido, que ilumine nossas noites às vezes longas, escuras e insones, mas todos parecem fechados e asfixiados, prestes a afogar-se sob as ondas das próprias tormentas.

À medida que se aprofunda o vazio, cresce a corrida vertiginosa e alucinada para preencher suas reentrâncias obscuras e aparentemente selvagens. Multiplicamos tarefas, ruídos e palavras, na tentativa de calar esse clamor que sobre das entranhas mais íntimas. Enchemos a agenda de encontros e compromissos, para fugir a esse chamado sem nome, sem rosto e sem voz. Coisas, pessoas e relações servem de pretexto para silenciar um desejo que, por estranho e desconhecido, tudo fazemos para ignorá-lo ou sepultá-lo. Freneticamente consumimos os mais estranhos objetos, todos os segundos e minutos do tempo disponível, o prazer de manipular os aparelhos sofisticados de que dispomos... Tudo em vão!

A brasa do desejo permanece viva sob a avalanche de atividades para encobri-la. Frente a ela, nada podem os apelos do marketing, da propaganda e da publicidade. Menos ainda as bijuterias que, de loja em loja, pelos corredores iluminados do Shopping Center, vamos acumulando nas gavetas de nossas casas. Nem sequer a tecnologia de ponta, com seus artifícios e seu magnetismo, nos pode ajudar. As novidades e os modismos mais exóticos entram por nossas portas, mas a paz parece esquivar-se pelas janelas. "O rumor de anjos", de que fala Peter Berger, convive com o barulho ensurdecedor das máquinas, bem como com o piscar de luzes e o som metálico dos artefatos eletrônicos.

No fundo, permanecemos irremediavelmente sós e vazios, com o desejo oculto a pulsar no recôndito inacessível de nosso ser. Os desejos superficiais e imediatos com letra minúscula, de que está povoada a existência humana, não é capaz de apagar a chama do Desejo com letra maiúscula, que segue emitindo sinais indecifráveis de sua existência. Podemos responder às ondas dos impulsos, instintos e paixões que se manifestam à flor da pele, mas uma corrente subterrânea, ligada ao sangue e à pulsão vital de cada ser humano, circula invisivelmente em nossas veias. O vazio não é senão a sede de Deus, tanto mais forte quanto mais o mundo moderno ou pós-moderno tenta bani-lo dos assuntos terrestres.

Nos terremotos e tempestades de nossa trajetória, essa corrente oculta costuma emergir do fundo das águas, agita o fluxo e refluxo da maré, corrói pelo alicerce as verdades e certezas que nos davam segurança. Ao mesmo tempo, levanta novas perguntas e exige novas respostas. Vem à tona a pergunta fundamental da vida humana: de onde vim, quem sou para onde vou? Está em jogo o sentido da própria existência. Que significado tem meu agir tumultuado? São as situações limites da vida, quando, conforme Simone de Beauvoir, "as estrelas se apagam no céu e os marcos desaparecem da estrada". Como orientar minha frágil embarcação em meio a mares tão bravios, "nunca dantes navegados", acrescentaria o poeta Camões.

Na verdade, trata-se da pergunta que subjaz em vários relatos evangélicos diante do anúncio da Boa Nova por parte de Jesus. Frente à interpelação divina, personificada nos atos e palavras do Mestre, repete-se a pergunta humana: "o que fazer para herdar a vida eterna?". Não a vida após morte, mas uma vida marcada de tal forma por gestos solidários, que a morte não tem o poder de apagar. A morte só leva os mortos, não mata quem ama. A existência de quem "passa pela vida fazendo o bem" permanecerá eterna. Uma vez mais, é a pergunta pelo sentido fundamental da vida, para que esta não significa um par de anos ou décadas jogados fora.

A resposta ao vazio que em nós clama e reclama atenção vem expressada de forma magnífica na Carta de Paulo aos Filipenses. Não apenas no hino do despojamento de Jesus, o qual, embora "sendo de condição divina, não se apegou ciosamente ao fato de ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo" (Fl 2, 6-11). Com maior ênfase ainda, vem expressada na própria experiência de Paulo. "Judeu irrepreensível", atira pela janela todos os seus estudos, títulos e privilégios depois do encontro misterioso com o Ressuscitado. Pois, como escreve, "tudo eu considero perda, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, Meu Senhor; por ele, eu perdi tudo e tudo tenho como esterco, para ganhar Cristo" (Fl 3, 8).

Nada preenche o vazio que nos devora interiormente a não ser a intimidade com Deus, o Pai, com Jesus, o Filho, e com o Espírito Santo. Com razão escreve Edward Schillbeecky (Jesus a história de um vivente): "Jesus nos comunica apenas, da parte de Deus, que o próprio Deus é nossa garantia. E por isso os pobres, os que sofrem e os injustiçados têm realmente base para uma esperança positiva".


* Pe. Alfredo J. Gonçalves é Assessor das Pastorais Sociais.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

FELIZ 2011

FELIZ 2011
Frei Betto *

Para ti e para mim, um feliz ano-novo. Não mera troca numérica de calendário, de quem mantém seu corpo inerte, preso às raízes da insensatez. Nem a sucessão de dias que se repetem no giro cíclico dos gregos antigos, desprovidos de senso histórico. Nem a multiplicação das rugas que se acumulam em nossos corações, oxidadas pela covardia e a saudade de não ser o que se é.

Anseio por um ano-novo capaz de reacender em nós energias generosas, consciência crítica, solidariedade discreta, afetos adormecidos, e a irrefreável vitalidade de quem reinventa o amor a cada dia. Um novo tempo de alegorias, no qual a poesia nos embriague a alma.

Um novo ano despido de soberbas, de evocações ególatras, de rancores asfixiantes e da indizível inveja causada pela felicidade alheia. Ano livre de rumores nefastos, incontinência da língua, indiferença à dor e exacerbação de tudo aquilo que, em nós, esculpe o perfil ácido da desumanidade.

Para ti e para mim desejo um ano-novo em que cada manhã ressoe como o cantar de laudes sob o esplendor de uma revoada de pássaros. E que sejamos despertados pelo afago prenhe de alvíssaras. Sejam os nossos gestos expressões litúrgicas de bem-querer e gratidões.

Não desejo um novo ano de velhos vícios arraigados, como não considerar suficiente o necessário, acumular supérfluos nas gavetas da casa e do coração ou a leniência perante as injustiças. Nenhum ano pode ser novo se arrastamos vida afora nossas almas incendiadas pela ira, o humor de mãos dadas com o rancor, o orgulho como escudo frente aos que apontam nossos erros.

Quero, para ti e para mim, um ano-novo em que a partilha do pão instaure a paz e no qual toda paixão aflore em duradouro amor. Um ano no qual o tempo se desenlace como um tecido fino e transparente, a enlevar-nos na rota do transcendente. Ano de silente contemplação do milagre da Criação e cuidadosa proteção da mãe natureza.

Faço votos de que em 2011 a cegueira apague nossas fúteis ilusões e que brotos de saudáveis quimeras palmilhem a estrada que conduz ao mais íntimo de nós mesmos. Seja para nós um ano de muita fortuna, inflado de projetos promissores, destituído de mesquinharias e perjúrios.

Ano bom é o que traz efervescência espiritual, o vinho a inebriar-nos do sagrado, a alma tecida de alegrias inefáveis, os passos movidos pela vontade alada, o vigor juvenil de quem não encara a velhice como doença. Ano de reavivar antigas amizades, libertar-se dos apegos vorazes, trocar a tagarelice pelo aconchego reflexivo dos livros e deixar a música inundar nossos mais recônditos sentimentos.

Ano-novo é o que transfigura nossas mais secretas intenções e projeta luz nas veredas escavadas por cada uma de nossas positivas atitudes. Assim, haverão de cair as escamas de nossos olhos, os ouvidos acolherão a melodia sideral, o perfume do otimismo nos inebriará, e de nossos lábios brotarão cânticos de aleluia.

Para ti e para mim seja o ano de 2011 ninho de férteis esperanças e senda primaveril rumo a outros mundos possíveis. À mesa, a gratuidade inconsútil; à porta, nossas resistência desarmadas; à sala, um rumor de anjos. E seja toda a casa reduto de sabores e saberes agradáveis ao paladar e à inteligência.

Seja novo, para ti e para mim, o ano entrante, não por reiniciar a sucessão de meses, semanas e dias, e sim por revitalizar nossos bons propósitos, livrar-nos da letargia frente aos desafios espelhados na utopia e arrancar de nosso âmago toda erva daninha semeada por ambições desmedidas.

Novo por incutir em nós a modéstia translúcida de avós afetuosas, o fervor espiritual dos místicos, a exuberância dos bailarinos a multiplicarem as potencialidades do corpo. Ano de romper barreiras do preconceito, derrubar cercas da ganância, fertilizar com sementes altruístas o chão no qual pisamos.

Para ti e para mim, um feliz ano-novo no qual a vida seja diariamente celebrada como dom de Deus, dádiva amorosa, encantadora aventura.

Ao longo deste ano esteja sempre presente, em nossas mentes e em nosso agir, que viver é muito perigozo.


* Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais. Autor de "A arte de semear estrelas" (Rocco), entre outros livros.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O enigma da Cruz



O enigma da Cruz
Pe. Alfredo J. Gonçalves *

A cruz é maldita. Instrumento de tortura e morte do mundo antigo: atroz e duradouro, reservado aos rebeldes mais execrados. "Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro", diz São Paulo na Carta aos Gálatas (Gl 3,13), citando o Livro do Deuteronômio. Deus está ausente da cruz, pois, ainda conforme a citação do Deuteronômio, "aquele que é pendurado é um objeto de maldição divina" (Dt 21,23). O Pai não pode comungar com a violência extremada dos homens, especialmente quando esta se abate sobre um inocente que "passou pela vida fazendo o bem" (At 10,38). Daí o grito atormentado e incompreensível do Filho, agonizante no alto da cruz, citando o salmo 22: "Elói, Elói, lamma sabactáni?", "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" (Mc 15,34).
 

Mas é igualmente incompreensível que, em momento tão crucial (e este adjetivo tem origem na cruz), o pai abandone o filho. É este, aliás, que torna presente o amor do Pai no seu gesto humano-divino, o gesto mais inaudito e surpreendente de todos os tempos: "Pai perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem!" (Lc 23,34). Aqui o contraste se eleva à máxima potência. À ação violenta das autoridades que o julgaram e dos soldados que o executam, Jesus responde com o perdão. A manifestação mais extremada da violência se confronta com a própria personificação da misericórdia. Enquanto, de um lado, os verdugos se atiram como que embriagados sobre a presa inocente, de outro, Deus "se vinga" oferecendo a dádiva do perdão. Sendo Jesus Cristo a revelação do amor divino, o verbo feito carne, este é sem dúvida o momento sublime de tal revelação.
 

Nesta linha de reflexão, exclui-se completamente a idéia de que o Pai entrega o Filho em sacrifício pela salvação da humanidade. Hoje é unânime entre os estudiosos o consenso de que a morte brutal de Jesus é fruto de seu profetismo e testemunho, ambos de uma radicalidade sem precedentes. Nessa trajetória em defesa da justiça e dos pobres, o nazareno se bate com as forças conservadoras da época, representando tanto o poder judaico quanto o império romano. São as autoridades constituídas que manipulam o povo, exigindo deste um "crucifica-o, crucifica-o" que, irremediável e fatalmente o levará ao calvário. E o Pai, permanece silencioso, indiferente, alheio à cena do Gólgota? O silêncio de Deus é a condição da liberdade humana. Deus é fiel porque cala, respeitando as opções de cada um. Em tudo, menos no pecado, Jesus experimenta a condição humana (Hb 4,15).

Semelhante reflexão remete à obra de René Girard, particularmente A Violência e o Sagrado e O Bode Expiatório. Nesses estudos, o autor sustenta que a resposta de Jesus ao seu julgamento e execução tão bárbara quebra o círculo vicioso da violência, tão comum nas religiões antigas. Nestas, a violência cotidiana exigia um ritual esporádico, igualmente violento, para refazer a coesão e a paz social. Assim se equilibrava e se neutralizava o ciclo espiral dos atos violentos. Era como se o sangue das vítimas - humanas ou animais - aplacasse a fúria das multidões, refletida na ira dos deuses. A reciprocidade violenta ajudava a conter o círculo repetitivo do caos indiferenciado, gerado por algum tipo de agressão. Dessa forma, a vida em sociedade era como que re-fundada periodicamente em rituais de sacrifício. A civilização estava alicerçada na violência recíproca.

Em outra obra, As coisas escondidas desde a criação do mundo, o mesmo autor esclarece como o perdão, oferecido no alto da cruz e no auge do sofrimento, instaura a fundação de outro tipo de relações humanas e sociais. Aqui os laços nascem não do medo e do equilíbrio entre as forças em permanentes choques violentos, e sim no amor e na solidariedade, inclusive para com os inimigos. Jesus inaugura a possibilidade de outro princípio para própria civilização, desta vez alicerçada em redes solidárias recíprocas. As duas grandes guerras mundiais, o holocausto e a guerra-fria, períodos cáusticos e tragicamente pontilhado por milhares de cadáveres insepultos, pode ser outro resultado da violência mútua.

Retomando o tema, o Pai encontra-se, ao mesmo tempo, ausente e presente na cruz onde o Filho dolorosamente agoniza. Ausente na fúria humana que desencadeia a tormenta assassina sobre o profeta dos últimos tempos. Fúria que se reproduz ao longo dos tempos sobre milhões e milhões de vítimas da história, crucificadas pela pobreza, a miséria, a fome e a violência em suas mil formas. Mas Deus está presente no ato de perdão do Filho que, desse modo, revela com todas as luzes o coração misericordioso, compassivo e amoroso de Deus. Coração do bom pastor, do bom samaritano ou do pai que espera ansioso pela volta do "filho pródigo". Nesse contraste inédito entre a violência e o amor, há como que um curto-circuito, uma faísca, um raio - que ilumina o mistério da cruz. O gesto gratuito de perdão como resposta aos algozes que o torturam constitui uma semente. Uma semente que não pode morrer!

Por isso Jesus não é enterrado, mas semeado. Um grupo de leigos, majoritária e sintomaticamente formado por mulheres, se encarrega de descer do madeiro o corpo do Crucificado. São as personagens do momento da crise, da tragédia, da escuridão. Os demais, até mesmo os futuros apóstolos e colunas da futura Igreja, haviam se dispersado. Mas aquele punhado de pessoas toma sobre si a tarefa de prestar as últimas homenagens ao falecido. Não é difícil imaginar com que dor e com que tristeza tais pessoas o fazem. Tampouco é difícil imaginar com que carinho e com que delicadeza elas o transportam ao túmulo. Aí o corpo, de acordo com o costume da época, é cuidadosamente perfumado, envolto em lençóis limpos e "semeado".

A ternura e o esmero que revestem semelhante tarefa parecem acompanhadas de uma profunda intuição: aquele corpo é uma semente e a semente, quando o lavrador lança-a à terra, o faz na esperança de que possa brotar. Inconscientemente, para aqueles poucos fiéis, o retorno à vida parece ser um fruto inevitável frente a uma entrega tão grandiosa. Como se a ressurreição precedesse a própria morte: resultado inequívoco de uma vida que não pode ser apagada nas marcas deixadas na pedra viva da história. Os ventos furiosos da morte não podem desfazer as pegadas de um amor tão belo, tão inteiro e tão profundo. No ato mesmo de "semear" o corpo de Jesus no túmulo está impregnada a intuição de que sua obra e seu gesto final constituem uma semente. Semente que, no solo úmido e aparentemente estéril, irá amadurecer e se levantar. Lançará raízes no terreno da história humana, para depois erguer-se triunfante rumo ao ar livre, ao céu azul, à luz do sol, à Casa do Pai. A ressurreição está em germe, no coração contrito e entristecido daquele pequeno grupo. Talvez para ele o túmulo vazio não tenha representado nenhuma surpresa!

Em outras palavras, na árdua travessia do deserto, quando tudo se faz escuro e parece não haver saída, quem toma nas mãos as rédeas da "história da salvação" é um grupo de leigos, especialmente mulheres. De fato, o espaço compreendido entre a cruz e a ressurreição é tempo de trevas, de desespero. As expectativas com relação ao Reino de Deus se frustram. Tudo parece acabado, o medo tomou o lugar da esperança. Diante dos acontecimentos trágicos, os antigos discípulos sentem-se órfãos, sós e perdidos com a morte do Mestre: enquanto um o havia traído e outro negado, os demais se põem em fuga. Com a exceção do discípulo amado, a debandada contamina a todos.

Emblemático a esse respeito é o episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35). Tristes, impotentes, medrosos e cabisbaixos, retornam para o seu povoado, dando por encerrada a aventura de Jesus de Nazaré. Se o líder terminou suspenso no alto da cruz, o que não poderá ocorrer com eles! O mais seguro é deixar os arredores de Jerusalém e refugiar-se tranquilamente em casa. O mesmo episódio, porém, marca uma reviravolta. Se a ida de Jerusalém a Emaús é o caminho do medo e do fracasso, a volta de Emaús a Jerusalém representa o despertar da chama encoberta pelas cinzas: "não ardia nosso coração quando Ele nos explicava as Escrituras?" Os antigos companheiros de Jesus, que empreendiam uma dolorosa fuga, o reconhecem ao partir o pão. Imediatamente se lhes abre os olhos e o coração para a nova realidade. A brasa ressurge, se reaviva, e ambos regressam com asas nos pés para anunciar a Boa Nova. Todo o episódio representa um parto em que o discípulo desalentado se torna missionário ardoroso, para usar a expressão do Documento de Aparecida. A semente lançada à terra começa a germinar.


* Pe. Alfredo J. Gonçalves é assessor das Pastorais Sociais.

Paulo, o Apóstolo

Paulo, o Apóstolo
Frei Betto *

Paulo de Tarso, que dá nome à mais rica e populosa cidade do Brasil, foi sem dúvida um homem singular. Um dos primeiros discípulos de Jesus, é sobre ele que possuímos mais informações, graças às cartas que escreveu, das quais conhecemos 13, e ao relato do evangelista Lucas, com quem fez viagens missionárias, intitulado Atos dos Apóstolos - documentos que integram o Novo Testamento e são considerados pela Igreja fontes de revelação de Deus.

Paulo ou Saulo, nascido provavelmente no ano 1 de nossa era e falecido em 64, aos 63 anos, em Roma, falava de si mesmo sem o menor pudor e se gabava de sua cultura (2 Coríntios 11, 6) e do título de "cidadão romano" (Atos 16, 37), herdado do pai. O que comprova que certa dose de narcisismo ou vaidade não é prejudicial à santidade… Ou melhor, demonstra que os santos são tão humanos como qualquer um de nós, imperfeitos e pecadores. A diferença é que, em tudo, buscam realizar a vontade de Deus.


Observe o leitor como Paulo se apresenta: "Sou judeu de Tarso da Cilícia, cidadão de uma cidade de renome (Atos 21, 39), circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamin, hebreu, filho de hebreus segundo a Lei (de Moisés), fariseu… Pela justiça da Lei, considerado irrepreensível." (Filipenses 3, 5-6).


Como quase todos os judeus inseridos na cultura grega, ele acresceu ao próprio nome judeu, Saulo, outro grego, foneticamente semelhante: Paulo.

Seus pais haviam emigrado da Palestina para Tarso. Judeus piedosos, resistiram à ideia de matricular o filho em escolas gregas. Tão logo completou 14 anos, Paulo foi remetido a Jerusalém, onde morava sua irmã casada e estudou na mais renomada escola rabínica da época: "aos pés de Gamaliel" (Atos 22, 3). Seus textos demonstram que tinha sólida formação teológica. E era excelente escritor. Seu "Hino ao Amor" (1 Coríntios 13, 1-13) é um dos mais belos poemas da literatura universal:

Ainda que eu falasse
A língua dos homens e dos anjos,
E não tivesse amor,
Seria como o bronze que soa
Ou o címbalo que tine…

A conversão

Paulo encontrava-se entre os apedrejadores do jovem levita Estevão, condenado por "blasfêmia" por haver se tornado cristão. As vestes dos executores foram depositadas "aos pés de um jovem, chamado Saulo" (Atos 7, 58). O próprio Paulo se penitencia mais tarde: "Senhor, enquanto era derramado o sangue de tua testemunha, Estevão, eu estava presente (…) e guardava as vestes daqueles que o matavam" (Atos 22, 20).

Saulo tornou-se aguerrido inimigo dos cristãos: "Persegui de morte esta doutrina, acorrentando e encarcerando homens e mulheres" (Atos 22, 4). Sua ira recaía especialmente sobre os cristãos "ecumênicos", que se abrigavam em Damasco. Os judeu-cristãos de Jerusalém, mais apegados à lei mosaica, não foram molestados por ele.

Ele mesmo narrou o que lhe ocorreu aos 28 anos: "Fui com o objetivo de ali prendê-los (os cristãos) e trazê-los acorrentados a Jerusalém, onde seriam castigados. Ora, estando eu a caminho e aproximando-me de Damasco, pelo meio-dia, de repente me cercou uma intensa luz do céu. Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: "Saulo, Saulo, por que me persegues?" Respondi: "Quem és, senhor?" E ele me disse: "Sou Jesus Nazareno, a quem persegues." (Atos 22, 5-10).

Paulo diz que caiu. Não se sabe se do cavalo, da carroça ou simplesmente tombou ao caminhar… O fato é que o martírio de Estevão havia lhe causado um forte impacto.

Talvez o neocristão tivesse preferido, ao abraçar o seguimento de Jesus, inserir-se na comunidade de Jerusalém. Contudo, foi em Damasco, ao pregar nas sinagogas, que despertou sua vocação apostólica. Pouco depois se retirou para o deserto, talvez para se preparar, espiritual e teologicamente, em alguma comunidade judeu-cristã "ecumênica". Ali permaneceu treze anos! Nada se sabe sobre esse período da vida dele.

A missão

Aos 41 anos de idade, Paulo dirigiu-se a Jerusalém para "visitar" o chefe da nascente Igreja, Pedro (Gálatas 1, 18). Dali, retornou a sua cidade natal, Tarso, de onde teve de fugir, repudiado pelos judeus. Dirigiu-se à Antioquia, onde florescia uma comunidade cristã. De Jerusalém enviaram-lhe um assistente: Barnabé.

Paulo e Barnabé iniciaram suas viagens missionárias no ano 45, por Chipre, onde o segundo havia nascido. Percorreram os 150 km de extensão da ilha, de Salamina a Pafos, semeando a fé cristã. Entre os judeus, não tiveram êxito, o que foi compensado por importante conquista entre os pagãos: a conversão, em Pafos, do procônsul Sérgio Paulo.

Paulo dedicou mais de 14 anos a viagens missionárias. Percorreu cerca de 15 mil km e enfrentou todo tipo de dificuldades: foi açoitado, apedrejado, preso, assaltado; naufragou, sentiu-se traído, passou fome, frio e noites sem dormir (2 Coríntios 11, 24-27), exposto "ao perigo a todo o momento" (1 Coríntios 15, 30). Destemido, nunca guardou ressentimento.

Uma característica de Paulo era a sua capacidade de aculturação. Aos judeus, prega em sinagogas. Em Listra, na falta de sinagoga, dirigiu-se às portas de Júpiter, onde os pagãos julgaram ver Mercúrio, o deus da eloquência, em forma humana… (Atos 14, 11).

Nem sempre é fácil fazer coincidir a mudança de nosso modo de pensar com a do nosso modo de agir. Foi o que ocorreu a judeu-cristãos de Jerusalém e a Pedro. Eles acreditavam que um pagão convertido ao cristianismo deveria, primeiro, aceitar certos rituais judaicos, como a circuncisão e as práticas de pureza. Ora, Paulo discordava de tal recomendação. Para ele, um pagão podia abraçar a fé em Cristo sem a menor observância à lei mosaica. Frente ao impasse, no ano 51 ele participou, em Jerusalém, do primeiro Concílio da história da Igreja.

Pela Carta aos Gálatas, sabemos qual foi a atitude de Paulo no Concílio. Acusou os adeptos da circuncisão de "falsos irmãos" e de "intrusos que se infiltraram para espionar a liberdade que temos em Jesus Cristo, a fim de nos escravizar" (Gálatas 2, 4). Lucas nos faz saber que "a discussão foi longa" (Atos 15, 7). Ao final, chegaram a um acordo, com certas concessões aos mais tradicionalistas.

Porém, logo depois, em Antioquia, ocorre um incidente entre ele e Pedro. Eis o que Paulo escreveu na Carta aos Gálatas (2, 11-14): "Quando Pedro foi a Antioquia, eu o enfrentei em público, porque ele estava claramente errado. De fato, antes de chegarem algumas pessoas da parte de Tiago (bispo de Jerusalém), ele comia com os pagãos; mas, depois que chegaram, Pedro começou a evitar os pagãos e já não se misturava com eles, pois tinha medo dos circuncidados. Os outros judeus também começaram a fingir e até Barnabé se deixou levar pela hipocrisia. Quando vi que eles não estavam agindo direito, conforme a verdade do Evangelho, eu disse a Pedro, na frente de todos: "Você é judeu, mas está vivendo como os pagãos e não como os judeus. Como pode, então, obrigar os pagãos a viverem como judeus?""

Paulo não era contra os judeu-cristãos observarem a lei mosaica. Encarava isso com tolerância. A questão se complicou quando percebeu que Pedro mudou seu modo de agir e passou a admitir que a salvação não viria apenas como dom gratuito de Cristo, mas também pelo cumprimento da lei de Moisés. Ao retomar seus antigos costumes judaicos, Pedro fez os pagão-cristãos se sentirem inferiores aos judeu-cristãos, como se fossem fiéis de segunda classe.

O exemplo

Paulo fazia questão de não ser um peso às comunidades que o acolhiam. Sustentava-se com o seu ofício de fabricante de tendas e de objetos de couro (Atos 18, 3). Nesse sentido, abdicava de sua origem elitista e se igualava a servos e escravos, os únicos que, naquela cultura helenista, faziam trabalhos manuais. Assim, disseminava a palavra de Cristo na base social do Império Romano.

Paulo era um pedagogo. Não se enclausurava num templo à espera de que os fiéis viessem ao seu encontro. Ao chegar a Atenas, onde a comunidade judaica era pequena, dirigiu-se à ágora, onde o povo se reunia para debater temas diversos. Foi encarado como "charlatão" (Atos 17, 18) que anunciava um novo par de divindades: Jesus e Anástase. Isso porque ele pregava a Ressurreição, em grego "anástasis".

Sugeriram-lhe ir ao Areópago, a colina de Marte, onde se reuniam os interessados em filosofia. Paulo exercitou ali toda a sua pedagogia evangelizadora: valorizou seus ouvintes como "extremamente religiosos" (Atos 17, 22) e, ao deparar-se com um altar dedicado "ao Deus desconhecido", soube tirar proveito: "Aquele que venerais sem conhecer é este que vos anuncio" (Atos 17, 23). E parafraseando Arato, poeta conhecido pelos gregos, concluiu que Deus "não está longe de cada um de nós; é nele que vivemos, nos movemos e existimos" (Atos 17, 27-28).

Para tempos de fundamentalismos religiosos, Paulo nos deixou importante legado por seu testemunho de quem passou de perseguidor a perseguido; de membro da elite a pregador itinerante abrigado em comunidades populares; de fariseu intolerante a cristão dotado de espírito ecumênico; de legalista a misericordioso.

Paulo soube ser grego com os gregos e judeu com os judeus; respeitou a hierarquia da Igreja sem deixar de criticar inclusive o papa, Pedro; demonstrou que o contrário do medo não é a coragem, é a fé.

Com muita justeza, Paulo admitiu na Segunda carta a Timóteo (4, 7-8): "Combati o bom combate, terminei a minha corrida, conservei a fé. Agora só me resta a coroa da justiça que o Senhor, justo juiz, me entregará naquele Dia."

Místico, Paulo ousou exclamar: "Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim" (Gálatas 2, 20).


* Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais. Autor do romance "Um homem chamado Jesus" (Rocco), entre outros livros.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Sakineh Ashtiani: Adultério, apedrejamento e objetividade

Sakineh Ashtiani: Adultério, apedrejamento e objetividade
Maria Clara Lucchetti Bingemer *

No isolamento de uma prisão no Irã, uma mulher de 43 anos vive o compasso de espera pela execução por apedrejamento. Seu crime? Adultério. Acrescido ultimamente da acusação de conspiração para o homicídio do marido, assassinado pelo amante.

Tal como no antigo Israel e em várias outras civilizações semitas, o adultério era um dos crimes punidos com o apedrejamento. Assim também a blasfêmia, da qual Jesus de Nazaré foi acusado. Acabou sendo crucificado porque sua condenação foi proferida pelo poder romano.

O Islã nasceu vários séculos após o Judaísmo e o Cristianismo e seu livro sagrado, o Alcorão, é venerado pelos muçulmanos como a própria Palavra de Deus feita livro, já que teria sido diretamente revelado por Deus ao profeta Maomé. Portanto, a religião islâmica considera o Alcorão intocável e não modificável, na forma e no fundo, no espírito e na letra.

No entanto, o apedrejamento não é sequer mencionado no Alcorão. Este estipula a pena de cem chibatadas ou prisão perpétua para adúlteros. No entanto, tal como no Cristianismo existe a Bíblia - onde se crê estar a Palavra de Deus revelada ao povo de Israel e à primeira comunidade apostólica - e também o Direito Canônico, que seria a Lei da Igreja para os católicos; e a Confissão de Westminster, que seria algo análogo para protestantes históricos, no Islã existe a Xaria.

Xaria é o nome que o Islã dá ao seu código de leis. No Irã, assim como outras sociedades islâmicas, diferentemente das sociedades ocidentais contemporâneas, o regime é teocrático. Ou seja, religião e direito, religião e política não se separam e a vida dos cidadãos é regida pela lei religiosa. Todas as leis são religiosas e baseadas nas escrituras sagradas e nos ditos dos líderes religiosos.

Ou seja, o Alcorão é a fonte primordial da jurisprudência islâmica, sendo a segunda a Suna, narrativa da vida e dos caminhos do profeta e os ahadith, ou narrações do profeta. "A diferença entre o Alcorão e a Suna, é que o texto do Alcorão e o seu significado vêem de Deus; ao Anjo Gabriel só coube levar essa mensagem ao profeta e a ele só coube receber, preservar, transmitir essa mensagem para as pessoas e explicar o que necessitava de explicação. Enquanto que a Suna, as tradições os significados são de Deus e o texto do profeta, diz Deus o Altíssimo.

Entre todo esse meandro de sutis diferenciações interpretativas, próprias a todas as religiões, está sendo decidido o destino de Sakineh Mohammadi Ashtiani, a bela iraniana de olhos negros e tristes. Apesar de não haver menção ao apedrejamento no Alcorão, defensores deste tipo de condenação afirmam que ela está em um Hadith e, portanto, é narrativa do profeta e como tal, sagrada e parte do corpo da Xaria.

O apedrejamento está previsto na Xaria, para punir tanto mulheres como homens adúlteros e homossexuais. Apesar disso, não há consenso na comunidade islâmica sobre a validade da prática do apedrejamento. Alguns países muçulmanos, como o Irã, o Sudão e a Nigéria adotaram a visão radical do Islã e da ética derivada da revelação divina em seu sistema judicial. No entanto, outros países, como o Afeganistão e o Paquistão, já aboliram esta pena.

Se assim reza a letra da lei, a prática, no entanto muitas vezes vai em outra direção. Em 2002, o então chefe do Judiciário iraniano, o aiatolá Mahmoud Hashemi-Shahroudi, ordenou a suspensão das execuções por apedrejamento. Contudo, juízes locais ainda podem ordenar apedrejamentos. A justiça pelas próprias mãos em nome da fidelidade à Xaria ainda acontece com frequência para punir adultérios.

No caso do Irã, a pena de morte por apedrejamento voltou a ser imposta após a Revolução de 1979, quando o país passou a ter um regime teocrático islâmico. Desde então, 109 pessoas morreram apedrejadas, segundo o Comitê Internacional Contra Apedrejamento. Mesmo que o judiciário iraniano regularmente suspenda as execuções por apedrejamento, frequentemente os condenados são executados de outras maneiras, como na forca. E secretamente, para não chamar a atenção da opinião pública.

Assim, o apedrejamento de Sakineh parece inevitável. A mídia e as ONGs de direitos humanos procuram chamar a atenção da opinião pública mundial numa tentativa de frear a inflexibilidade do governo do presidente Amahdinejad. O próprio presidente Lula ofereceu asilo à iraniana, que o aceitou. A reação de Teerã não foi muito positiva e Lula não repetiu a oferta nem nela insistiu.

O caso é, sem dúvida, complexo. Por um lado, está o respeito devido a toda religião de aplicar aquilo que considera como seu credo e conduta. É impensável hoje anatematizar como barbárie ou magia, ou atraso - como antes era feito - práticas religiosas de outros apenas porque diferem das nossas.

No entanto, há, parece-me, outro lado do problema. Tentando um mínimo de objetividade, há certos fatos que repugnam a sensibilidade humana simplesmente por ser humana. E isso é fruto de uma evolução da consciência da humanidade. Existem condutas que já foram consideradas religiosamente legítimas e hoje não mais o são.

Houve um tempo em que se acreditava que os escravos deveriam continuar escravos e nada fazer para romper sua escravidão em busca da liberdade. Aquilo seria vontade de Deus. Hoje indigna-nos apenas a menção dessa possibilidade. A escravidão é algo objetivamente inumano e iníquo.

Os pobres nasciam pobres porque assim era a vontade de Deus. Os ricos desfrutavam impunemente de sua riqueza e não se julgavam minimamente responsáveis pela injustiça reinante no mundo. Hoje, é no mínimo ridículo usar este argumento, já que se sabe que há mecanismos sociais e econômicos que produzem a injustiça estrutural onde estamos mergulhados e que se deve combatê-la e não justificá-la, muito menos em nome da fé ou da religião.

Houve também um tempo em que organizar guerras e matar pessoas para recuperar lugares sagrados da própria religião eram considerados atos legítimos e até abençoados por líderes religiosos e santos. É o caso das Cruzadas. Tempo houve igualmente em que prender, torturar e matar na fogueira pessoas suspeitas de aderirem a outros credos era prática usual. É o caso da Inquisição. Muito tem sido criticada a Igreja Católica por haver adotado essas práticas. Por quê? Porque é algo objetivamente contra os mais elementares direitos humanos.

Parece-me que, com todo o respeito que se deve ter ao Islã, executar sob a cruel forma do apedrejamento uma mulher cuja culpa foi relacionar-se sexualmente com outro homem que não seu marido, repugna objetivamente a humanidade de quem se pretende humano. Disso se trata e nada mais.

Sakineh Mohammadi Ashtiani merece viver porque é um ser humano. Simplesmente isso. Ninguém tem direito sobre sua vida a não ser Deus, seu Criador. Nem sempre religião e fé coincidem harmoniosamente. Parece-me que este é um caso. A lei religiosa condena Sakineh. Esperemos que a fé islâmica, em sua pureza e raiz, consiga flexibilizar o governo iraniano em sua decisão sobre o destino final desta mulher.


* Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Autora de "Deus amor: graça que habita em nós" (Editora Paulinas), entre outros livros.


O Chão e o Horizonte

O Chão e o Horizonte
Manfredo Araújo de Oliveira *

Este é o título de um documento que alguns organismos vinculados à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil(CNBB) acabam de publicar como subsídio de reflexão a respeito das próximas eleições. Qual a razão deste título? Ele pretende exprimir a atitude que devemos ter frente às situações que marcam nossa vida. O chão diz respeito a tudo aquilo que constitui o mundo em que estamos inseridos que começa precisamente com o chão da vida quotidiana e nos dá o senso do real. O horizonte aponta para onde levam os caminhos. Vivemos um momento muito importante: o momento das eleições que são apesar de todos os seus limites uma grande oportunidade para avaliar, re-afirmar ou corrigir os rumos que marcam a vida de nosso país. A construção de uma sociedade mais humana, portanto, justa, democrática e ecologicamente equilibrada implica o entrelaçamento destas duas perspectivas. Concretamente levar em consideração o chão e o horizonte significa tomar uma posição crítica frente à realidade e buscar com seriedade meios que contribuam para a construção de um mundo alternativo.

A consideração do horizonte destaca a crise, que na realidade é uma combinação de crises, gestada pelo capitalismo neoliberal que por princípio eliminou qualquer regulação do mercado e reduziu drasticamente os investimentos em políticas sociais. Este processo provocou uma aceleração da exclusão social e produziu um modelo de desenvolvimento predatório que esgota os recursos naturais em função de uma produção e um consumo sem limites o que em si mesmo constitui uma ameaça grave a própria sobrevivência da espécie humana e de toda vida no planeta.

A consideração do chão destaca o fato que hoje uma classe, chamada de classe "c", tem tido um grande crescimento em nossa sociedade e já abrange uma boa parte das famílias brasileiras. Esta classe conseguiu mudar seu padrão de vida graças a algumas políticas sociais o que tem levado a uma revitalização do mercado interno. Para estes o sonho do consumo antes impossível pode parcialmente ser realizado. Enquanto estas populações aprovam fortemente o governo atual, suas políticas são também fortemente criticadas como gastança desnecessária pelas classes de melhor poder aquisitivo.

Neste contexto, tudo indica que o processo das eleições presidenciais nos estaria induzindo a ter que escolher entre o Estado indutor do crescimento econômico e redistribuidor de renda e o Estado dito enxuto que privilegia a iniciativa privada admitindo apenas os gastos sociais que não provoquem déficit nas contas públicas. Se nos detemos na consideração do chão do cotidiano tudo se reduz ao dilema entre Estado mínimo e política desenvolvimentista. Um passo importante é dado quando se compreende que ambas as propostas são variantes do mesmo modelo produtivista-consumista, o que significa que na realidade não nos confrontamos com propostas que pretendam ir além daquilo que provocou a crise que hoje vivemos. Diante deste quadro, afirma o documento, é urgente voltar os olhos para o horizonte e nos perguntarmos que fazer.

O sociólogo belga François Houtart nos ajuda a delinear o horizonte da sociedade desejável. Para ele ela pode ser construída sobre quatro grandes eixos. Primeiro, uma relação de respeito e não de exploração com a natureza o que implica declarar a água e as sementes patrimônio universal e não permitir sua privatização. O segundo eixo é privilegiar o valor de uso sobre o valor de troca, o que significa que os produtos e os serviços teriam que ser desenvolvidos em função das necessidades humanas. O terceiro eixo é a democratização da sociedade não somente no campo político, mas em todas as relações sociais coletivas, na economia, nas instituições de saúde, de educação, no esporte e na religião, entre homens e mulheres. O quarto eixo é a multiculturalidade: a possibilidade de que todos os saberes, filosofias e religiões contribuam para a construção social coletiva.


* Manfredo Araújo de Oliveira é doutor em Filosofia e professor da UFC. Presidente da Adital

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O cúmulo da iniquidade humana

O cúmulo da iniquidade humana
Fr. Marcos Sassatelli *

O sequestro e a execução do menino Lucas, de doze anos, é o cúmulo da iniquidade humana. Não dá para entender como possa existir, em pleno século XXI, tanta crueldade. Como pessoas humanas e, sobretudo, como cristãos não podemos ficar calados diante de tanta barbárie. Exigimos justiça.

Lucas morava na Vila Brasília, em Aparecida de Goiânia. Era um menino franzino e nasceu com um defeito nos pés. Começou a andar depois de uma cirurgia, realizada no Hospital das Clínicas da UFG. Usava crack desde os oito anos e, para alimentar o vício, praticava pequenos furtos, passando várias vezes pela polícia.

No dia 16 de julho deste ano, "Lucas foi retirado da porta de casa, na Rua Juçara, por volta das três horas, por homens que ocupavam um carro preto de vidro fumê. O garoto ainda gritou a mãe, mas ela não conseguiu abrir o portão a tempo. Meia hora depois a Polícia Militar de Senador Canedo foi acionada por um chacareiro que viu o corpo de Lucas estendido na estrada (próximo ao Goiás Carne) depois de ouvir o barulho de um carro e quatro disparos" (O Popular, Cidades, 17 de julho de 2010, p. 8).

Meu Deus, em que sociedade nós vivemos! Além do mais, se tratava de uma criança! Que brutalidade!

Eliete, a mãe de Lucas, é uma mulher sofrida e aparenta muito mais idade da que tem. Depois de separar do marido, cuidou sozinha dos seis filhos. Na madrugada do dia 16, "Eliete acordou com os gritos de Lucas, o filho que nasceu com problema nos pés. Por causa do problema congênito e do uso do crack, Lucas era o filho que mais preocupava Eliete. A mãe tentou de todo jeito abrir o portão. Eliete chora o tempo todo como se cobrasse de si mesma por não ter salvado a vida do filho. (…) Eliete se sente fracassada por não ter conseguido tirar Lucas do vício. Há mais de quatro anos buscou ajuda em órgãos públicos, em vão" (Ib.).

É muito doído ouvir a Eliete dizer que "há mais de quatro anos buscou ajuda em órgãos públicos, em vão". Será que essa decepção da Eliete, manifestada em forma de desabafo, não diz nada à consciência dos responsáveis desses órgãos públicos?

Quando será que o Poder Público cumprirá a Constituição Federal? Ela nos lembra que os direitos das crianças e dos adolescentes devem ser assegurados "com absoluta prioridade" e que as crianças e os adolescentes devem ser colocados a salvo "de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (Art. 227).

A Eliete, não precisa se sentir fracassada por não ter conseguido tirar Lucas do vício. Ela é uma verdadeira heroína. Infelizmente, é a nossa sociedade que ainda é muito hipócrita, injusta e desumana. Tenho certeza na fé que Lucas, totalmente liberto, está agora junto de Deus na plenitude da vida e da felicidade. Está também -embora de maneira diferente- junto de sua mãe Eliete, dando-lhe paz e força para que possa continuar a caminhada.

Exigimos da nova Secretária de Segurança Pública do Estado de Goiás, Renata Cheim, que o crime bárbaro da execução de Lucas, uma criança de doze anos, seja investigado e que os culpados sejam processados, julgados e punidos. É o mínimo que pode ser feito para que haja justiça.

Tudo indica que se trata, mais uma vez, de um crime de violência policial, com requinte de crueldade, por ser a vítima uma criança. O advogado da Eliete -conforme noticiou a imprensa- "disse que foi a P2" (Ib.).

Lembrem-se os assassinos de Lucas que Deus é justo. Aguardem!

Goiânia, 02 de agosto de 2010


* Fr. Marcos Sassatelli é Frade Dominicano. Doutor em Filosofia e em Teologia Moral. Prof. na Pós-Graduação em DD.HH. (Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil/PUC-GO). Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arq. de Goiânia. Admin. Paroq. da Paróquia N. Sra. da Terra