"O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranqüilas. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do SENHOR por longos dias."(Salmos 23: 1-6)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Sakineh Ashtiani: Adultério, apedrejamento e objetividade

Sakineh Ashtiani: Adultério, apedrejamento e objetividade
Maria Clara Lucchetti Bingemer *

No isolamento de uma prisão no Irã, uma mulher de 43 anos vive o compasso de espera pela execução por apedrejamento. Seu crime? Adultério. Acrescido ultimamente da acusação de conspiração para o homicídio do marido, assassinado pelo amante.

Tal como no antigo Israel e em várias outras civilizações semitas, o adultério era um dos crimes punidos com o apedrejamento. Assim também a blasfêmia, da qual Jesus de Nazaré foi acusado. Acabou sendo crucificado porque sua condenação foi proferida pelo poder romano.

O Islã nasceu vários séculos após o Judaísmo e o Cristianismo e seu livro sagrado, o Alcorão, é venerado pelos muçulmanos como a própria Palavra de Deus feita livro, já que teria sido diretamente revelado por Deus ao profeta Maomé. Portanto, a religião islâmica considera o Alcorão intocável e não modificável, na forma e no fundo, no espírito e na letra.

No entanto, o apedrejamento não é sequer mencionado no Alcorão. Este estipula a pena de cem chibatadas ou prisão perpétua para adúlteros. No entanto, tal como no Cristianismo existe a Bíblia - onde se crê estar a Palavra de Deus revelada ao povo de Israel e à primeira comunidade apostólica - e também o Direito Canônico, que seria a Lei da Igreja para os católicos; e a Confissão de Westminster, que seria algo análogo para protestantes históricos, no Islã existe a Xaria.

Xaria é o nome que o Islã dá ao seu código de leis. No Irã, assim como outras sociedades islâmicas, diferentemente das sociedades ocidentais contemporâneas, o regime é teocrático. Ou seja, religião e direito, religião e política não se separam e a vida dos cidadãos é regida pela lei religiosa. Todas as leis são religiosas e baseadas nas escrituras sagradas e nos ditos dos líderes religiosos.

Ou seja, o Alcorão é a fonte primordial da jurisprudência islâmica, sendo a segunda a Suna, narrativa da vida e dos caminhos do profeta e os ahadith, ou narrações do profeta. "A diferença entre o Alcorão e a Suna, é que o texto do Alcorão e o seu significado vêem de Deus; ao Anjo Gabriel só coube levar essa mensagem ao profeta e a ele só coube receber, preservar, transmitir essa mensagem para as pessoas e explicar o que necessitava de explicação. Enquanto que a Suna, as tradições os significados são de Deus e o texto do profeta, diz Deus o Altíssimo.

Entre todo esse meandro de sutis diferenciações interpretativas, próprias a todas as religiões, está sendo decidido o destino de Sakineh Mohammadi Ashtiani, a bela iraniana de olhos negros e tristes. Apesar de não haver menção ao apedrejamento no Alcorão, defensores deste tipo de condenação afirmam que ela está em um Hadith e, portanto, é narrativa do profeta e como tal, sagrada e parte do corpo da Xaria.

O apedrejamento está previsto na Xaria, para punir tanto mulheres como homens adúlteros e homossexuais. Apesar disso, não há consenso na comunidade islâmica sobre a validade da prática do apedrejamento. Alguns países muçulmanos, como o Irã, o Sudão e a Nigéria adotaram a visão radical do Islã e da ética derivada da revelação divina em seu sistema judicial. No entanto, outros países, como o Afeganistão e o Paquistão, já aboliram esta pena.

Se assim reza a letra da lei, a prática, no entanto muitas vezes vai em outra direção. Em 2002, o então chefe do Judiciário iraniano, o aiatolá Mahmoud Hashemi-Shahroudi, ordenou a suspensão das execuções por apedrejamento. Contudo, juízes locais ainda podem ordenar apedrejamentos. A justiça pelas próprias mãos em nome da fidelidade à Xaria ainda acontece com frequência para punir adultérios.

No caso do Irã, a pena de morte por apedrejamento voltou a ser imposta após a Revolução de 1979, quando o país passou a ter um regime teocrático islâmico. Desde então, 109 pessoas morreram apedrejadas, segundo o Comitê Internacional Contra Apedrejamento. Mesmo que o judiciário iraniano regularmente suspenda as execuções por apedrejamento, frequentemente os condenados são executados de outras maneiras, como na forca. E secretamente, para não chamar a atenção da opinião pública.

Assim, o apedrejamento de Sakineh parece inevitável. A mídia e as ONGs de direitos humanos procuram chamar a atenção da opinião pública mundial numa tentativa de frear a inflexibilidade do governo do presidente Amahdinejad. O próprio presidente Lula ofereceu asilo à iraniana, que o aceitou. A reação de Teerã não foi muito positiva e Lula não repetiu a oferta nem nela insistiu.

O caso é, sem dúvida, complexo. Por um lado, está o respeito devido a toda religião de aplicar aquilo que considera como seu credo e conduta. É impensável hoje anatematizar como barbárie ou magia, ou atraso - como antes era feito - práticas religiosas de outros apenas porque diferem das nossas.

No entanto, há, parece-me, outro lado do problema. Tentando um mínimo de objetividade, há certos fatos que repugnam a sensibilidade humana simplesmente por ser humana. E isso é fruto de uma evolução da consciência da humanidade. Existem condutas que já foram consideradas religiosamente legítimas e hoje não mais o são.

Houve um tempo em que se acreditava que os escravos deveriam continuar escravos e nada fazer para romper sua escravidão em busca da liberdade. Aquilo seria vontade de Deus. Hoje indigna-nos apenas a menção dessa possibilidade. A escravidão é algo objetivamente inumano e iníquo.

Os pobres nasciam pobres porque assim era a vontade de Deus. Os ricos desfrutavam impunemente de sua riqueza e não se julgavam minimamente responsáveis pela injustiça reinante no mundo. Hoje, é no mínimo ridículo usar este argumento, já que se sabe que há mecanismos sociais e econômicos que produzem a injustiça estrutural onde estamos mergulhados e que se deve combatê-la e não justificá-la, muito menos em nome da fé ou da religião.

Houve também um tempo em que organizar guerras e matar pessoas para recuperar lugares sagrados da própria religião eram considerados atos legítimos e até abençoados por líderes religiosos e santos. É o caso das Cruzadas. Tempo houve igualmente em que prender, torturar e matar na fogueira pessoas suspeitas de aderirem a outros credos era prática usual. É o caso da Inquisição. Muito tem sido criticada a Igreja Católica por haver adotado essas práticas. Por quê? Porque é algo objetivamente contra os mais elementares direitos humanos.

Parece-me que, com todo o respeito que se deve ter ao Islã, executar sob a cruel forma do apedrejamento uma mulher cuja culpa foi relacionar-se sexualmente com outro homem que não seu marido, repugna objetivamente a humanidade de quem se pretende humano. Disso se trata e nada mais.

Sakineh Mohammadi Ashtiani merece viver porque é um ser humano. Simplesmente isso. Ninguém tem direito sobre sua vida a não ser Deus, seu Criador. Nem sempre religião e fé coincidem harmoniosamente. Parece-me que este é um caso. A lei religiosa condena Sakineh. Esperemos que a fé islâmica, em sua pureza e raiz, consiga flexibilizar o governo iraniano em sua decisão sobre o destino final desta mulher.


* Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Autora de "Deus amor: graça que habita em nós" (Editora Paulinas), entre outros livros.


O Chão e o Horizonte

O Chão e o Horizonte
Manfredo Araújo de Oliveira *

Este é o título de um documento que alguns organismos vinculados à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil(CNBB) acabam de publicar como subsídio de reflexão a respeito das próximas eleições. Qual a razão deste título? Ele pretende exprimir a atitude que devemos ter frente às situações que marcam nossa vida. O chão diz respeito a tudo aquilo que constitui o mundo em que estamos inseridos que começa precisamente com o chão da vida quotidiana e nos dá o senso do real. O horizonte aponta para onde levam os caminhos. Vivemos um momento muito importante: o momento das eleições que são apesar de todos os seus limites uma grande oportunidade para avaliar, re-afirmar ou corrigir os rumos que marcam a vida de nosso país. A construção de uma sociedade mais humana, portanto, justa, democrática e ecologicamente equilibrada implica o entrelaçamento destas duas perspectivas. Concretamente levar em consideração o chão e o horizonte significa tomar uma posição crítica frente à realidade e buscar com seriedade meios que contribuam para a construção de um mundo alternativo.

A consideração do horizonte destaca a crise, que na realidade é uma combinação de crises, gestada pelo capitalismo neoliberal que por princípio eliminou qualquer regulação do mercado e reduziu drasticamente os investimentos em políticas sociais. Este processo provocou uma aceleração da exclusão social e produziu um modelo de desenvolvimento predatório que esgota os recursos naturais em função de uma produção e um consumo sem limites o que em si mesmo constitui uma ameaça grave a própria sobrevivência da espécie humana e de toda vida no planeta.

A consideração do chão destaca o fato que hoje uma classe, chamada de classe "c", tem tido um grande crescimento em nossa sociedade e já abrange uma boa parte das famílias brasileiras. Esta classe conseguiu mudar seu padrão de vida graças a algumas políticas sociais o que tem levado a uma revitalização do mercado interno. Para estes o sonho do consumo antes impossível pode parcialmente ser realizado. Enquanto estas populações aprovam fortemente o governo atual, suas políticas são também fortemente criticadas como gastança desnecessária pelas classes de melhor poder aquisitivo.

Neste contexto, tudo indica que o processo das eleições presidenciais nos estaria induzindo a ter que escolher entre o Estado indutor do crescimento econômico e redistribuidor de renda e o Estado dito enxuto que privilegia a iniciativa privada admitindo apenas os gastos sociais que não provoquem déficit nas contas públicas. Se nos detemos na consideração do chão do cotidiano tudo se reduz ao dilema entre Estado mínimo e política desenvolvimentista. Um passo importante é dado quando se compreende que ambas as propostas são variantes do mesmo modelo produtivista-consumista, o que significa que na realidade não nos confrontamos com propostas que pretendam ir além daquilo que provocou a crise que hoje vivemos. Diante deste quadro, afirma o documento, é urgente voltar os olhos para o horizonte e nos perguntarmos que fazer.

O sociólogo belga François Houtart nos ajuda a delinear o horizonte da sociedade desejável. Para ele ela pode ser construída sobre quatro grandes eixos. Primeiro, uma relação de respeito e não de exploração com a natureza o que implica declarar a água e as sementes patrimônio universal e não permitir sua privatização. O segundo eixo é privilegiar o valor de uso sobre o valor de troca, o que significa que os produtos e os serviços teriam que ser desenvolvidos em função das necessidades humanas. O terceiro eixo é a democratização da sociedade não somente no campo político, mas em todas as relações sociais coletivas, na economia, nas instituições de saúde, de educação, no esporte e na religião, entre homens e mulheres. O quarto eixo é a multiculturalidade: a possibilidade de que todos os saberes, filosofias e religiões contribuam para a construção social coletiva.


* Manfredo Araújo de Oliveira é doutor em Filosofia e professor da UFC. Presidente da Adital

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O cúmulo da iniquidade humana

O cúmulo da iniquidade humana
Fr. Marcos Sassatelli *

O sequestro e a execução do menino Lucas, de doze anos, é o cúmulo da iniquidade humana. Não dá para entender como possa existir, em pleno século XXI, tanta crueldade. Como pessoas humanas e, sobretudo, como cristãos não podemos ficar calados diante de tanta barbárie. Exigimos justiça.

Lucas morava na Vila Brasília, em Aparecida de Goiânia. Era um menino franzino e nasceu com um defeito nos pés. Começou a andar depois de uma cirurgia, realizada no Hospital das Clínicas da UFG. Usava crack desde os oito anos e, para alimentar o vício, praticava pequenos furtos, passando várias vezes pela polícia.

No dia 16 de julho deste ano, "Lucas foi retirado da porta de casa, na Rua Juçara, por volta das três horas, por homens que ocupavam um carro preto de vidro fumê. O garoto ainda gritou a mãe, mas ela não conseguiu abrir o portão a tempo. Meia hora depois a Polícia Militar de Senador Canedo foi acionada por um chacareiro que viu o corpo de Lucas estendido na estrada (próximo ao Goiás Carne) depois de ouvir o barulho de um carro e quatro disparos" (O Popular, Cidades, 17 de julho de 2010, p. 8).

Meu Deus, em que sociedade nós vivemos! Além do mais, se tratava de uma criança! Que brutalidade!

Eliete, a mãe de Lucas, é uma mulher sofrida e aparenta muito mais idade da que tem. Depois de separar do marido, cuidou sozinha dos seis filhos. Na madrugada do dia 16, "Eliete acordou com os gritos de Lucas, o filho que nasceu com problema nos pés. Por causa do problema congênito e do uso do crack, Lucas era o filho que mais preocupava Eliete. A mãe tentou de todo jeito abrir o portão. Eliete chora o tempo todo como se cobrasse de si mesma por não ter salvado a vida do filho. (…) Eliete se sente fracassada por não ter conseguido tirar Lucas do vício. Há mais de quatro anos buscou ajuda em órgãos públicos, em vão" (Ib.).

É muito doído ouvir a Eliete dizer que "há mais de quatro anos buscou ajuda em órgãos públicos, em vão". Será que essa decepção da Eliete, manifestada em forma de desabafo, não diz nada à consciência dos responsáveis desses órgãos públicos?

Quando será que o Poder Público cumprirá a Constituição Federal? Ela nos lembra que os direitos das crianças e dos adolescentes devem ser assegurados "com absoluta prioridade" e que as crianças e os adolescentes devem ser colocados a salvo "de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (Art. 227).

A Eliete, não precisa se sentir fracassada por não ter conseguido tirar Lucas do vício. Ela é uma verdadeira heroína. Infelizmente, é a nossa sociedade que ainda é muito hipócrita, injusta e desumana. Tenho certeza na fé que Lucas, totalmente liberto, está agora junto de Deus na plenitude da vida e da felicidade. Está também -embora de maneira diferente- junto de sua mãe Eliete, dando-lhe paz e força para que possa continuar a caminhada.

Exigimos da nova Secretária de Segurança Pública do Estado de Goiás, Renata Cheim, que o crime bárbaro da execução de Lucas, uma criança de doze anos, seja investigado e que os culpados sejam processados, julgados e punidos. É o mínimo que pode ser feito para que haja justiça.

Tudo indica que se trata, mais uma vez, de um crime de violência policial, com requinte de crueldade, por ser a vítima uma criança. O advogado da Eliete -conforme noticiou a imprensa- "disse que foi a P2" (Ib.).

Lembrem-se os assassinos de Lucas que Deus é justo. Aguardem!

Goiânia, 02 de agosto de 2010


* Fr. Marcos Sassatelli é Frade Dominicano. Doutor em Filosofia e em Teologia Moral. Prof. na Pós-Graduação em DD.HH. (Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil/PUC-GO). Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arq. de Goiânia. Admin. Paroq. da Paróquia N. Sra. da Terra

Por que persiste a Igreja-poder?

Por que persiste a Igreja-poder?
Leonardo Boff *

Vou abordar um tema incômodo, mas incontornável: como pode a instituição-Igreja, como a descrevi num artigo anterior, com características autoritárias, absolutistas e excludentes se perpetuar na história? A ideologia dominante responde: "só porque é divina". Na verdade, este exercício de poder não tem nada de divino. Era o que Jesus exatamente não queria. Ele queria a hierodulia (sagrado serviço) e não a hierarquia (sagrado poder). Mas esta se impôs através dos tempos.

Instituições autoritárias possuem uma mesma lógica de autoreprodução. Não é diferente com a Igreja-instituição. Em primeiro lugar, ela se julga a única verdadeira e tira o título de "igreja" a todas as demais. Em seguida cria-se um rigoroso enquadramento: um pensamento único, uma única dogmática, um único catecismo, um único direito canônico, uma única forma de liturgia. Não se tolera a crítica nem a criatividade, vistas como negação ou denunciadas como criadoras de uma Igreja paralela ou de um outro magistério.

Em segundo lugar, se usa a violência simbólica do controle, da repressão e da punição, não raro à custa dos direitos humanos. Facilmente o questionador é marginalizado, nega-se-lhe o direito de pregar, de escrever e de atuar na comunidade. O então Card. Joseph Ratzinger, Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé, em seu mandato, puniu mais de cem teólogos. Nesta mesma lógica, pecados e crimes dos sacerdotes pedófilos ou outros delitos, como os financeiros, são mantidos ocultos para não prejudicar o bom nome da Igreja, sem o menor sentido de justiça para com as vítimas inocentes.

Em terceiro lugar, mitificam-se e quase idolatram-se as autoridades eclesiásticas principalmente o Papa que é o "doce Cristo na Terra". Penso eu lá com meus botões: que doce Cristo representava o Papa Sérgio (904), assassino de seus dois predecessores ou o Papa João XII (955), eleito com a idade de 20 anos, adúltero e morto pelo marido traído ou, pior, o Papa Bento IX (1033), eleito com 15 anos de idade, um dos mais criminosos e indignos da história do papado, chegando a vender a dignidade papal por 1000 liras de prata?

Em quarto lugar, canonizam-se figuras cujas virtudes se enquadram no sistema, como a obediência cega, a contínua exaltação das autoridades e o "sentir com a Igreja (hierarquia)", bem no estilo fascista segundo o qual "o chefe (o ducce, o Führer) sempre tem razão".

Em quinto lugar, há pessoas e cristãos com natureza autoritária, que acima de tudo apreciam a ordem, a lei e o princípio de autoridade em detrimento da lógica complexa da vida que tem surpresas e exige tolerância e adaptações. Estes secundam esse tipo de Igreja bem como regimes políticos autoritários e ditatoriais. Aliás, há uma estreita afinidade entre os regimes ditatoriais e a Igreja-poder como se viu com os ditadores Franco, Salazar, Mussolini, Pinochet e outros. Padres conservadores são facilmente feitos bispos e bispos fidelíssimos a Roma são promovidos, fomentando a subserviência. Esse bloco histórico-social-religioso se cristalizou e garantiu a continuidade a este tipo de Igreja.

Em sexto lugar, a Igreja-poder sabe do valor dos ritos e símbolos pois reforçam identidades conservadoras, pouco zelando por seus conteúdos, contanto que sejam mantidos inalteráveis e estritamente observados.

Em razão desta rigidez dogmática e canônica, a Igreja-instituição não é vivida como lar espiritual. Muitos emigram. Dizem sim ao cristianismo e não à Igreja-poder com a qual não se identificam. Dão-se conta das distorções feitas à herança de Jesus que pregou a liberdade e exaltou o amor incondicional.

Não obstante estas patologias, possuímos figuras como o Papa João XXIII, Dom Helder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Luiz Flávio Cappio e outros que não reproduzem o estilo autoritário, nem apresentam-se como autoridades eclesiásticas mas como pastores no meio do Povo de Deus. Apesar destas contradições, há um mérito que importa reconhecer: esse tipo autoritário de Igreja nunca deixou de nos legar os evangelhos, mesmo negando-os na prática, e assim permitindo-nos o acesso à mensagem revolucionária do Nazareno. Ela prega a libertação mas geralmente são outros que libertam.


* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor



Liberdade, a virtude dos filhos de Deus

Liberdade, a virtude dos filhos de Deus
Carmen Sílvia Machado Galvão *

Mesmo que não se queira dogmatizar a compreensão do tema liberdade, é imperioso que se busque a formação de juízos aproximados, como a possibilidade de uma pessoa fazer suas próprias escolhas e colocá-las em execução. Ser livre é um direito natural que todo o ser humano tem. Então, surge a questão: o que é ser livre?

No início da década de 80, libertação era uma palavra tabu, torciam o nariz... os "libertários" eram malvistos, muitos foram perseguidos, mandados calar, pressionados até o desespero. Só restaram os leigos, que não deviam obediência a nenhuma autoridade religiosa. Muitos tinham medo da censura e só escreveram coisas superficiais, catequese, liturgia, devocionários populares, etc. Nada que comprometesse. Com isto perdeu o pensamento teológico da Igreja do Brasil, que pouco evoluiu, em comparação com o de outros países da América Latina, da Europa e até da Ásia. Quem combateu a teologia da libertação talvez não tenha se dado conta do mal que fez à Igreja, uma vez que "nosso Deus é um Deus libertador". Esta assertiva não provém da produção dos teólogos latino-americanos, mas é encontrada nas Sagradas Escrituras:

Javé disse: "Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel, o território dos cananeus, heteus, amorreus, ferezeus, heveus e jebuseus. O clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e eu estou vendo a opressão com que os egípcios os atormentam. Por isso, vá. Eu envio você ao Faraó, para tirar do Egito o meu povo, os filhos de Israel" (Ex 3, 7-10).


O Senhor é minha rocha, minha fortaleza, meu libertador (2Sm 22,2);


Javé é meu libertador (Sl 18,3);

As ações libertadoras de Javé são a prefiguração da práxis de Jesus Cristo, libertador definitivo dos homens. Assim como Javé o foi do povo hebreu a partir daquela primeira páscoa, Jesus é para nós e será sempre para as gerações futuras o Go’el (libertador). Ao seu povo, servil a tantos cativeiros, ele lança a promessa de libertação, que nada mais é que uma antecipação do evangelho libertador (cf. Is 52,2/ 61,1).

Assim como acontece com a verdade, ninguém é dono da liberdade, apenas Deus que a concede como um dom. Desta forma não se admite que alguém diga como é e como não é a libertação. Ela é dom e se manifesta conforme o Espírito suscita, no interior da Igreja-comunidade e diretamente no coração de cada um.

É isto que a liberdade proporciona. Em Jo 8 Jesus, ao dizer que a verdade nos libertará, faz a união, estabelece o diálogo entre a libertação (que é luz) e a verdade, que é ele próprio. Por isto, anima o povo ao afirmar que a libertação (com ele) está chegando aos que crêem:

[...] levantem-se e ergam a cabeça, porque a libertação de vocês está próxima (Lc 21,28).

A entrega na cruz subentende liberdade. Ela é história do Filho, história do Pai e do Espírito. Sob o aspecto teológico da fé, liberdade é adesão, vida cristã renovada e espiritualidade. Na liberdade que se comunica com a luz brota a vida nova, abundante. A gente pede a Deus água e ele dá um regato, um manancial, uma cascata...pede-se uma flor e ele dá um jardim, uma plantação de rosas...A quem pede uma árvore ela concede uma floresta, cheia de sombras, paz e perfume silvestre... Liberdade é graça e opção. Os textos do Novo Testamento nos revelam que a liberdade cristã deságua em três questões:

1. Do pecado (Jo 8, 31-36; Rm 6,18-23)

• é operada por Jesus Cristo e consiste na vocação em renunciar à injustiça e toda a espécie de mal. Organiza a vida cristão pelo poder do Espírito Santo e transforma-se - pelo amor - em doce servidão a Deus.

2. Da lei que escraviza (At 15,10; Rm 8,2; Gl 2,4; 5,1.13)

• Às vezes a excessiva preocupação com a lei se transforma em um jugo. O que salva é a graça e não a lei; o que liberta o homem da vontade de pecar é a conversão e não o temor das sanções da lei. Certas leis, por injustas, anacrônicas e autoritárias ensejam o desejo de pecar.

3. Da morte (cf. Rm 6,23; 7, 9ss; 1Cor 15,56)

• Pecado e morte são juízos afins, pois um está ligado ao outro num contexto de nexo causal. Assim como o coração do homem está dividido entre amor e egoísmo, também em sua existência se debatem vida e morte. Alei do Espírito que dá a vida é um novo dinamismo interior que, com a própria vontade de Deus, liberta o homem da lei do pecado e da morte eterna.

A partir de Jesus Cristo, Deus e homem, se instaura no mundo uma práxis capaz de restaurar a criação desfigurada pelo pecado, que tem raízes no mau uso da liberdade. Jesus vem libertar a vida das garras da morte e projetá-la para a liberdade integral, conforme o projeto do Pai. Nesse processo, o cristão, membro do povo de Deus é agente de destinatário da libertação. A libertação que não levar em consideração a liberdade pessoal daqueles que por ela combatem, está, de antemão, condenada ao fracasso. O sentido primário e fundamental da libertação, que se manifesta na história humana, é o sentido soteriológico (refere-se à salvação); o homem é libertado da escravidão radical do mal e do pecado.

Ele nos arrancou do poder das trevas e nos introduziu no Reino de seu Filho muito amado (Cl 1,13).


* Carmen Sílvia Machado Galvão é teóloga leiga, socióloga e escritora

Qual o legado da crise com os pedófilos na Igreja?

Qual o legado da crise com os pedófilos na Igreja?
Leonardo Boff *

No século XVI no auge do poder dos Papas renascentistas em Roma envoltos em escândalos de toda ordem, surgiu um clamor em toda a Igreja de "reforma na cabeça e nos membros". Esse clamor vinha dos leigos, do baixo clero e dos teólogos como Lutero, Zwinglio e outros. Em resposta veio a Contra-Reforma que transformou a Igreja Católica num baluarte contra o movimento dos Reformadores, enrijecendo ainda mais suas estruturas de poder.

Agora o escândalo dos padres pedófilos em vários países católicos fez com que surgisse também um vigoroso clamor por reformas estruturais na Igreja. Ele não vem apenas de baixo como no tempo da Reforma, mas principalmente de cima, de cardeais e bispos. Primeiramente, este pecado, este crime gerou uma desastrosa gestão do Vaticano. Inicialmente tentou-se desqualificar os fatos como "fofocas mediáticas"; depois, procurou-se ocultá-los, usando até o "sigilo pontifício" a pretexto de salvaguardar a presumida santidade intrínseca da Igreja; em seguida, minimizaram-se os fatos, ou criou-se o factóide de um complô de obscuras forças laicistas contra a Igreja e por fim, face à impossibilidade de qualquer via de desculpa e de fuga, a verdade incômoda veio à tona.

O Papa tomou medidas severas contra os pedófilos, consideradas insuficientes por muitos da própria Igreja. Pois, não basta a "tolerância zero" e as punições canônicas e civis. Tudo isso vem a posteriori, depois de cometido o delito. Nada se diz como evitar que tais escândalos se repitam e que reformas introduzir na vivência do celibato e na educação dos candidatos ao sacerdócio. Não se coloca como prioritária a salvaguarda das vítimas inocentes, muitas delas revelando um tenebroso vazio espiritual, fruto da traição que sentiram da Igreja, num misto de culpa e de vergonha.

Em seguida, as altas autoridades fizeram-se mutuamente graves acusações. O Card. Cristoph Schönborn de Viena acusou o Cardeal Angelo Sodano, quando era Secretário de Estado (o primeiro posto depois do Papa) de ter ocultado a pedofilia de seu antecessor na sede, o Card. Hans-Herrman Groër. Bispos alemães criticaram a conferência episcopal de não ter sido suficientemente vigilante face aos notórios abusos sexuais do bispo de Ausgburg Walter Mixa, obrigado a renunciar. O mesmo refere-se ao bispo de Bruges da Bélgica que abusou por 8 anos de um seu sobrinho.

Impactante é a autocrítica feita pelo arcebispo de Camberra Mark Coleridge, reconhecendo que a moral da Igreja concernente ao corpo e à sexualidade é rígida e de estilo jansenista, criando nos seminaristas uma "imaturidade institucionalizada", além da tendência à discreção e ao segredo face aos delitos, para manter o bom nome da Igreja, fruto de um hipócrita triunfalismo. O primaz da Irlanda Diarmuid Martin se perguntou sinceramente pelo futuro da Igreja em seu país, tal o número de pedófilos nas instituições e por muitos e longos anos. Reconhece que reformas são urgentes, pois, a Igreja "não pode ficar aprisionada em seu passado" mas deve introduzir mudanças fundamentais em sua estrutura que impeçam tais desvios. Talvez o documento mais lúcido e corajoso veio do bispo auxiliar de Camberra, Pat Power. Este cobra "uma necessária reforma sistêmica e total das estruturas da Igreja". Afirma que "na condução da Igreja, toda masculina, não reside toda a sabedoria, mas que ela deve ouvir a voz dos fiéis". Com coragem reconhece que "se as mulheres tivessem mais poder de decisão, não chegaríamos à crise atual".

Poderíamos aduzir outras vozes de altas autoridades eclesiásticas. Mas o importante é constatar que este escândalo que afetou o capital de ética e de confiança da Igreja-instituição, paradoxalmente deixou um legado positivo: suscitou a questão das reformas de base, aprovadas pelo Concílio Vaticano II. Estas, porém, foram boicotadas pela Cúria vaticana e pelos dois últimos Papas que se alinharam à uma visão conservadora e contrária à toda modernidade.

Os que amamos a Igreja com suas luzes e sombras queremos entender a atual crise como uma oportunidade suscitada pelo Espírito para que a Igreja-instituição, realmente, encontre a forma melhor de transmitir a boa-nova de Jesus e ajude a humanidade a enfrentar uma crise ainda maior, aquela do sistema-vida e do sistema-Terra, terrivelmente ameaçados.

* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor de Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja, Record (2008).












Igreja: uma leitura teológica

Igreja: uma leitura teológica
Leonardo Boff *

Nos artigos anteriores refletimos sobre uma questão particular, a do poder na Igreja, centralizado no clero e no Papa, de cariz absolutista. Alguns ficaram chocados; mas, a verdade é essa mesma. Agora cabe uma reflexão geral, de cunho teológico, quer dizer: considerar as realidades divinas subjacentes à Igreja, entendida como comunidade que se forma a partir da fé em Jesus como Filho de Deus e Salvador universal.

Notoriamente a intenção primeira de Jesus não foi a Igreja, mas o Reino de Deus, aquela utopia radical de completa libertação. Tanto assim que os evangelistas Lucas, Marcos e João sequer conhecem a palavra Igreja. É somente Mateus que fala três vezes de Igreja. Mas não se realizando o Reino devido a execução judicial de Jesus, foi a Igreja que entrou em seu lugar. O Novo Testamento nos transmite três formas diferentes de organizar a Igreja: a sinagogal de São Mateus, a carismática de São Paulo e a hierárquica dos discípulos de Paulo, Timóteo e Tito. Foi esta que prevaleceu.

Antes de tudo, a Igreja se define como comunidade de fiéis. Enquanto comunidade, ela se sente ancorada no Deus cristão que também é comunidade de Pai, Filho e Espírito Santo. Isto significa que a comunidade é anterior às instâncias de poder cujo lugar é no meio dela, como serviço de animação e de coesão. O amor e a comunhão, essência da Trindade, são também a essência teológica da Igreja.

Esta comunidade se sustenta sobre duas colunas: Jesus Cristo e o Espírito Santo. Jesus aparece sob duas figuras: a do homem de Nazaré, pobre, profeta ambulante que pregou o Reino de Deus (em oposição ao Reino de César) e que acabou na cruz; e sob a figura do ressuscitado que ganhou dimensão cósmica estando presente na matéria, na evolução e na comunidade, como antecipação do homem novo e do fim bom do universo.

A segunda coluna é o Espírito Santo. Ele estava presente no ato da criação do cosmos, sempre acompanha a humanidade e cada pessoa e chega antes do missionário. É ele que suscita a espiritualidade: a vivência do amor, do perdão, da solidariedade, da compaixão e da abertura a Deus. Na Igreja ele mantém vivo o legado de Jesus e é responsável por sua contínua atualização com carismas, pensamentos criativos, ritos e linguagens inovadoras.

Santo Ireneu (+200) disse bem: Cristo e o Espírito são as duas mãos do Pai com as quais nos alcança e nos salva.

Cristo por ser a encarnação do Filho, representa o lado mais permanente da Igreja, seu caráter institucional. O Espírito, o lado mais criativo, seu caráter dinâmico. A Igreja viva é simultaneamente algo estruturado mas também algo mutante como as inovações que fogem ao controle da instituição.

Diz-se também que a Igreja concreta, como comunidade e como movimento de Jesus, possui duas dimensões: a petrina e a paulina. A petrina (de São Pedro=Papa) é o princípio da Tradição e da continuidade. A dimensão paulina (de São Paulo) representa o momento de ruptura, a criatividade. Paulo deixou o solo judaico e partiu para a inculturação no mundo helênico. Pedro é a organização, Paulo a criação.

Pedro e Paulo se encontram unidos na figura do Papa, herdeiro e guardião das duas vertentes, simbolizadas pelos túmulos dos dois apóstolos em Roma. Ambas se pertencem mutuamente. Mas nos últimos séculos predominou a dimensão petrina, quase afogando a paulina. Tal desequilíbrio deu origem a uma organização eclesiástica centralista, com o poder em poucas mãos, conservadora e resistente ao novo, seja vindo do interior da Igreja mesma; seja da sociedade. O atual Papa é quase exclusivamente petrino, avesso a toda modernidade.

Hoje se impõe recuperar o equilíbrio eclesiológico perdido. A Igreja deve manter a herança intacta de Jesus (Pedro) e ao mesmo tempo renovar as formas de sua realização no mundo (Paulo). Só assim supera seu conservadorismo e mostra sua criatividade na comunicação com os contemporâneos. Ela não pode ser fonte de águas mortas, mas de águas vivas.

* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor de Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja, Record (2008).






Um outro jeito de ser Igreja

Um outro jeito de ser Igreja
Leonardo Boff *

Quem leu meu último artigo - Onde está a verdadeira crise da Igreja - poderá ter ficado desesperançado. Ai analisei a estrutura de poder da Igreja, centralizada, piramidal, absolutista e monárquica. Este tipo de poder não favorece o ideal evangélico de igualdade, de fraternidade e a participação dos fiéis. Antes fecha as portas à participação e ao amor. É que esse tipo de poder, por sua natureza, precisa ser forte e frio. O modelo de Igreja-poder se apresenta como a Igreja tout court, pior ainda, como querida por Cristo, quando, como mostrei, surgiu historicamente e é apenas sua instância de animação e direção, perfazendo menos de 0,1% de todos os fiéis. Portanto, não é toda a Igreja, apenas uma parte mínima dela.

Mas a Igreja-comunidade como fenômeno religioso e movimento de Jesus é muito mais que a instituição. Ela encontra outras formas de organização, bem mais próximas ao sonho do Fundador e de seus primeiros seguidores. Inteligentemente, os bispos brasileiros em sua reunião anual em Brasília de 4-13 de janeiro do corrente ano confessaram: "só uma Igreja com diferentes jeitos de viver a mesma fé será capaz de dialogar relevantemente com a sociedade contemporânea". Com isso eles quebraram a pretensão de um único modo de ser, aquele da Tradição do poder. Sem negar este, há muitos outros jeitos: o jeito da Igreja da libertação, dos carismáticos, dos religiosos e religiosas, da Ação Católica, até da Opus Dei, da Comunhão e Libertação e da Canção Nova, só para dizer as mais conhecidas.

Mas há um jeito que é todo especial e altamente promissor, nascido nos anos 50 do século passado no Brasil e que ganhou relevância mundial, pois foi assimilado em muitos países: as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Os bispos lhe dedicaram uma animadora "Mensagem ao Povo de Deus sobre as CEBs". Curiosamente, elas surgiram no momento em que eclodiu no Brasil uma nova consciência histórica. Na sociedade: o sujeito popular ansiando por mais participação política e na Igreja: o sujeito eclesial, ansiando também por mais participação e corresponsabilidade eclesial. As CEBs constituem outro modo de ser Igreja, cujo sujeito principal, mas não exclusivo, são os pobres. Seu estilo é comunitário, participativo e inserido na cultura local. Os serviços são rotativos e a escolha, democrática. Articulam continuamente fé e vida, ativos no campo religioso, criando novos serviços e ritos e ativos no campo social ou político, nos sindicatos, nos movimentos sociais como no MST ou nos partidos populares.

Não sabemos exatamente quantas são, mas calcula-se que cheguem a cem mil comunidades de base, envolvendo alguns milhões de cristãos. Os bispos constatam seu alto valor inovador e anti-sistêmico. O mercado expulsou as relações de cooperação e solidariedade enquanto nas CEBs se vive as relações fundadas na gratuidade, na lógica do oferecer-receber-retribuir. Elas assumiram a causa ecológica, por isso, se entendem também como CEBs = comunidades ecológicas de base. Desenvolveram uma forte espiritualidade do cuidado para com a vida e para com a Mãe Terra. Dai resultou mais respeito, veneração e cooperação com tudo o que existe e vive.

As CEBs mostram como a memória sagrada de Jesus pode receber outra configuração social, centrada na comunhão, no amor fraterno e na alegria de testemunhar a vitória da vida contra as opressões. É o significado existencial da ressurreição de Jesus como insurreição contra o tipo de mundo vigente.

Humildemente os bispos testemunham que elas ajudam a Igreja a estar mais comprometida com a vida e com o sofrimento dos pobres. Mais ainda: interpelam a Igreja inteira chamando-a à conversão, ao compromisso para a transformação do mundo em mundo de irmãos e irmãs.

Esse modo de ser Igreja pode servir de modelo para a inserção na cultura contemporânea, urbana e globalizada. Se fosse assumido como inspiração para o projeto do Papa Bento XVI de "reconquistar" a Europa, seguramente teria algum sucesso. Ver-se-iam comunidades de cristãos, intelectuais, operários, mulheres, jovens, vivendo sua fé em articulação com os desafios de suas situações. Não pretenderiam ter o monopólio da verdade e do caminho certo. Mas se associariam a todos os que buscam seriamente uma nova linguagem religiosa e um novo horizonte de esperança para a Humanidade.

* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor de Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja, Record (2008).

domingo, 15 de agosto de 2010

Pai Nosso dos Mártires



"Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados". (Mt 5,6)

"Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus". (Mt 5, 10)

Os que promovem a paz eque lutam pela justiça, sempre serão perseguidos por aqueles que não desejam dividir o poder, a riqueza, o status quo. Ser perseguido por causa da justiça é igualar-se à condição de Jesus, mártir maior da luta pelo fim da exclusão e da injustiça.