"O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranqüilas. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do SENHOR por longos dias."(Salmos 23: 1-6)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Sakineh Ashtiani: Adultério, apedrejamento e objetividade

Sakineh Ashtiani: Adultério, apedrejamento e objetividade
Maria Clara Lucchetti Bingemer *

No isolamento de uma prisão no Irã, uma mulher de 43 anos vive o compasso de espera pela execução por apedrejamento. Seu crime? Adultério. Acrescido ultimamente da acusação de conspiração para o homicídio do marido, assassinado pelo amante.

Tal como no antigo Israel e em várias outras civilizações semitas, o adultério era um dos crimes punidos com o apedrejamento. Assim também a blasfêmia, da qual Jesus de Nazaré foi acusado. Acabou sendo crucificado porque sua condenação foi proferida pelo poder romano.

O Islã nasceu vários séculos após o Judaísmo e o Cristianismo e seu livro sagrado, o Alcorão, é venerado pelos muçulmanos como a própria Palavra de Deus feita livro, já que teria sido diretamente revelado por Deus ao profeta Maomé. Portanto, a religião islâmica considera o Alcorão intocável e não modificável, na forma e no fundo, no espírito e na letra.

No entanto, o apedrejamento não é sequer mencionado no Alcorão. Este estipula a pena de cem chibatadas ou prisão perpétua para adúlteros. No entanto, tal como no Cristianismo existe a Bíblia - onde se crê estar a Palavra de Deus revelada ao povo de Israel e à primeira comunidade apostólica - e também o Direito Canônico, que seria a Lei da Igreja para os católicos; e a Confissão de Westminster, que seria algo análogo para protestantes históricos, no Islã existe a Xaria.

Xaria é o nome que o Islã dá ao seu código de leis. No Irã, assim como outras sociedades islâmicas, diferentemente das sociedades ocidentais contemporâneas, o regime é teocrático. Ou seja, religião e direito, religião e política não se separam e a vida dos cidadãos é regida pela lei religiosa. Todas as leis são religiosas e baseadas nas escrituras sagradas e nos ditos dos líderes religiosos.

Ou seja, o Alcorão é a fonte primordial da jurisprudência islâmica, sendo a segunda a Suna, narrativa da vida e dos caminhos do profeta e os ahadith, ou narrações do profeta. "A diferença entre o Alcorão e a Suna, é que o texto do Alcorão e o seu significado vêem de Deus; ao Anjo Gabriel só coube levar essa mensagem ao profeta e a ele só coube receber, preservar, transmitir essa mensagem para as pessoas e explicar o que necessitava de explicação. Enquanto que a Suna, as tradições os significados são de Deus e o texto do profeta, diz Deus o Altíssimo.

Entre todo esse meandro de sutis diferenciações interpretativas, próprias a todas as religiões, está sendo decidido o destino de Sakineh Mohammadi Ashtiani, a bela iraniana de olhos negros e tristes. Apesar de não haver menção ao apedrejamento no Alcorão, defensores deste tipo de condenação afirmam que ela está em um Hadith e, portanto, é narrativa do profeta e como tal, sagrada e parte do corpo da Xaria.

O apedrejamento está previsto na Xaria, para punir tanto mulheres como homens adúlteros e homossexuais. Apesar disso, não há consenso na comunidade islâmica sobre a validade da prática do apedrejamento. Alguns países muçulmanos, como o Irã, o Sudão e a Nigéria adotaram a visão radical do Islã e da ética derivada da revelação divina em seu sistema judicial. No entanto, outros países, como o Afeganistão e o Paquistão, já aboliram esta pena.

Se assim reza a letra da lei, a prática, no entanto muitas vezes vai em outra direção. Em 2002, o então chefe do Judiciário iraniano, o aiatolá Mahmoud Hashemi-Shahroudi, ordenou a suspensão das execuções por apedrejamento. Contudo, juízes locais ainda podem ordenar apedrejamentos. A justiça pelas próprias mãos em nome da fidelidade à Xaria ainda acontece com frequência para punir adultérios.

No caso do Irã, a pena de morte por apedrejamento voltou a ser imposta após a Revolução de 1979, quando o país passou a ter um regime teocrático islâmico. Desde então, 109 pessoas morreram apedrejadas, segundo o Comitê Internacional Contra Apedrejamento. Mesmo que o judiciário iraniano regularmente suspenda as execuções por apedrejamento, frequentemente os condenados são executados de outras maneiras, como na forca. E secretamente, para não chamar a atenção da opinião pública.

Assim, o apedrejamento de Sakineh parece inevitável. A mídia e as ONGs de direitos humanos procuram chamar a atenção da opinião pública mundial numa tentativa de frear a inflexibilidade do governo do presidente Amahdinejad. O próprio presidente Lula ofereceu asilo à iraniana, que o aceitou. A reação de Teerã não foi muito positiva e Lula não repetiu a oferta nem nela insistiu.

O caso é, sem dúvida, complexo. Por um lado, está o respeito devido a toda religião de aplicar aquilo que considera como seu credo e conduta. É impensável hoje anatematizar como barbárie ou magia, ou atraso - como antes era feito - práticas religiosas de outros apenas porque diferem das nossas.

No entanto, há, parece-me, outro lado do problema. Tentando um mínimo de objetividade, há certos fatos que repugnam a sensibilidade humana simplesmente por ser humana. E isso é fruto de uma evolução da consciência da humanidade. Existem condutas que já foram consideradas religiosamente legítimas e hoje não mais o são.

Houve um tempo em que se acreditava que os escravos deveriam continuar escravos e nada fazer para romper sua escravidão em busca da liberdade. Aquilo seria vontade de Deus. Hoje indigna-nos apenas a menção dessa possibilidade. A escravidão é algo objetivamente inumano e iníquo.

Os pobres nasciam pobres porque assim era a vontade de Deus. Os ricos desfrutavam impunemente de sua riqueza e não se julgavam minimamente responsáveis pela injustiça reinante no mundo. Hoje, é no mínimo ridículo usar este argumento, já que se sabe que há mecanismos sociais e econômicos que produzem a injustiça estrutural onde estamos mergulhados e que se deve combatê-la e não justificá-la, muito menos em nome da fé ou da religião.

Houve também um tempo em que organizar guerras e matar pessoas para recuperar lugares sagrados da própria religião eram considerados atos legítimos e até abençoados por líderes religiosos e santos. É o caso das Cruzadas. Tempo houve igualmente em que prender, torturar e matar na fogueira pessoas suspeitas de aderirem a outros credos era prática usual. É o caso da Inquisição. Muito tem sido criticada a Igreja Católica por haver adotado essas práticas. Por quê? Porque é algo objetivamente contra os mais elementares direitos humanos.

Parece-me que, com todo o respeito que se deve ter ao Islã, executar sob a cruel forma do apedrejamento uma mulher cuja culpa foi relacionar-se sexualmente com outro homem que não seu marido, repugna objetivamente a humanidade de quem se pretende humano. Disso se trata e nada mais.

Sakineh Mohammadi Ashtiani merece viver porque é um ser humano. Simplesmente isso. Ninguém tem direito sobre sua vida a não ser Deus, seu Criador. Nem sempre religião e fé coincidem harmoniosamente. Parece-me que este é um caso. A lei religiosa condena Sakineh. Esperemos que a fé islâmica, em sua pureza e raiz, consiga flexibilizar o governo iraniano em sua decisão sobre o destino final desta mulher.


* Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Autora de "Deus amor: graça que habita em nós" (Editora Paulinas), entre outros livros.


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